sábado, 6 de setembro de 2008

Sociologia - Os determinantes da desigualdade no Brasil

SociologiaOS DETERMINANTES DA
DESIGUALDADE NO BRASIL
1 - INTRODUÇÃO
Existem diversas razões pelas quais a desigualdade de renda necessita ser
investigada e monitorada. Em primeiro lugar, ela tem um impacto direto sobre o
bem-estar social na medida em que as sociedades têm preferência por eqüidade.
Além disso, está diretamente relacionada ao nível de diversas variáveis
socioeconômicas importantes como, por exemplo, a taxa de poupança da
economia, a taxa de mortalidade infantil e a extensão da pobreza. A dependência
destas variáveis ao grau de desigualdade de renda existe, tendo em vista que, em
nível microeconômico, as relações que as ligam à renda familiar per capita são
não-lineares e, portanto, o nível médio dessas variáveis depende não só do nível
médio da renda, mas também de como ela se encontra distribuída.
A geração e a produção da desigualdade de renda têm sido investigadas no Brasil
intensivamente, em particular após o golpe militar de 1964 e a publicação dos
censos demográficos de 1960 e 1970, com a conseqüente constatação de um
enorme crescimento no grau de desigualdade de renda ao longo dos anos 60. No
entanto, até o momento, as várias manifestações de desigualdade na sociedade
brasileira têm sido estudadas em separado, de forma não-integrada. Não é de
nosso conhecimento que algum estudo no Brasil tenha objetivado discutir, no
âmbito de um arcabouço coerente e integrado, as diversas formas de desigualdade
e suas inter-relações.1 Os dois exemplos a seguir procuram ilustrar a forma nãointegrada
como a questão da desigualdade tem sido tradicionalmente investigada
no Brasil.
Por um lado, Langoni (1973), em seu trabalho clássico sobre desigualdade de
renda no Brasil, estuda, profunda e elegantemente, como a desigualdade de renda
é gerada e revelada pelo mercado de trabalho a partir da heterogeneidade da força
de trabalho com respeito a nível educacional, idade, sexo, setor de atividade e
região de residência. Ele chega à conclusão fundamental de que um dos principais
determinantes da desigualdade de renda no Brasil são as disparidades educacionais
entre os membros da força de trabalho. Estas disparidades educacionais, no
entanto, não são simplesmente dadas, mas também criadas pela sociedade
brasileira. O autor, no entanto, não tenta identificar os determinantes da
desigualdade educacional.
Por outro, o trabalho clássico de Souza (1979) sobre o financiamento da
educação e acesso à escola no Brasil identifica, claramente, o papel das
disparidades regionais em gastos em educação e da educação dos pais como os
principais determinantes da desigualdade de educação da força de trabalho. Este
autor, porém, não investiga quais as conseqüências da desigualdade de educação
sobre a desigualdade de renda.
1Veja, no entanto, o trabalho recente de Lam e Levison (1990) para um exemplo de um estudo que
busca integrar a geração da desigualdade no Brasil pré-mercado de trabalho e no mercado de
trabalho.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
2
O principal objetivo deste capítulo é desenvolver um arcabouço teórico que possa
servir de base para investigar de maneira coerente e integrada as diversas formas
de desigualdade e identificar as fontes de produção e reprodução da desigualdade.
Este artigo encontra-se organizado em cinco seções, além desta introdução. Na
Seção 2, desenvolve-se um arcabouço teórico fazendo-se uma analogia entre os
processos de geração e reprodução da desigualdade de renda e uma seqüência de
corridas em que cada uma delas tem duas etapas. A primeira, na qual cada
participante se prepara para a competição (período da infância e adolescência, no
qual os indivíduos acumulam o seu capital humano). Ao final desta etapa observase
um certo grau de desigualdade entre os participantes que denominamos
desigualdade de condições. A segunda é aquela na qual, efetivamente, ocorre a
competição (em que os indivíduos competem no mercado de trabalho). Ao final
desta etapa observa-se um certo grau de desigualdade que denominamos
desigualdade de resultados.
Na Seção 3, procura-se quantificar, com base no arcabouço teórico desenvolvido
na seção anterior, as diversas dimensões da desigualdade no Brasil assim como
suas inter-relações. Mais especificamente, o objetivo é, em primeiro lugar, avaliar,
com base numa comparação internacional, o grau de desigualdade de renda no
Brasil. Os resultados mostram o Brasil com uma posição de destaque no cenário
internacional: é o país que, de longe, apresenta o mais elevado grau de
desigualdade. Em segundo lugar, busca-se analisar em que parte da distribuição
esta desigualdade está concentrada. O resultado é surpreendente: a desigualdade
de renda no Brasil encontra-se concentrada na causa superior da distribuição, isto
é, entre os 10% mais ricos. Finalmente, procura-se analisar a evolução da
desigualdade de renda no Brasil nas últimas três décadas. A desigualdade de renda
no Brasil, não somente é elevada , mas também crescente. Este processo, apesar
de contínuo, não teve a mesma intensidade ao longo das três últimas décadas, com
o aumento da desigualdade sendo bastante intenso na décadas de 60 e 80, mas
consideravelmente menor na década de 70.
Na Seção 4, analisa-se a conexão entre o mercado de trabalho e a desigualdade de
renda observada (desigualdade de resultados) procurando identificar se o mercado
de trabalho é um gerador ou apenas um transformador de desigualdades. Discutese
esta conexão, em primeiro lugar, teoricamente, e, em seguida, procura-se
avaliar as evidências empíricas existentes, buscando-se estimar que parcela da
desigualdade salarial é gerada pelo mercado de trabalho via segmentação e
discriminação e que parcela é apenas o resultado da transformação da
desigualdade intrínseca da força de trabalho. No caso da segmentação, investigamse
os resultados referentes a três tipos: diferenciais salariais por ramo de atividade,
diferenciais entre os setores formal e informal e diferenciais regionais de salário.
No caso da discriminação, investigam-se os resultados referentes à discriminação
por gênero e raça. Os resultados desta seção revelam que o mercado de trabalho
no Brasil é muito mais transformador da desigualdade de condições do que
gerador de desigualdade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
3
Com base nas evidências apresentadas na seção anterior, a Seção 5 analisa com
mais profundidade o papel do mercado de trabalho como transformador de
desigualdades. Discute-se como o mercado de trabalho transforma em
desigualdade salarial a desigualdade entre trabalhadores, com respeito a três
características intimamente ligadas à produtividade: experiência no mercado de
trabalho, na empresa e nível educacional. Para cada uma destas características
avalia-se o grau de desigualdade na distribuição desta característica, o grau de
sensibilidade dos salários a variações nesta característica e a magnitude da
desigualdade salarial obtida da transformação da desigualdade na distribuição da
característica em desigualdade salarial.
A análise da importância do mercado de trabalho como transformador de
desigualdade requer estimativas da desigualdade de qualidade entre os
trabalhadores e da relação entre qualidade e produtividade. A seção anterior tratou
da relação entre produtividade e qualidade do trabalhador (uma característica do
mercado de trabalho) e seus determinantes. A desigualdade de qualidade entre
trabalhadores, gerada na fase anterior ao mercado de trabalho (primeira fase da
corrida), é o objeto de estudo da Seção 6. Nessa seção investiga-se o papel do
ambiente familiar e das disparidades regionais em infra-estrutura na geração da
desigualdade.
2 - O PROCESSO DE GERAÇÃO E REPRODUÇÃO DA
DESIGUALDADE: A CORRIDA
O objetivo desta seção é construir um arcabouço teórico para os processos de
geração e reprodução da desigualdade. Este arcabouço baseia-se numa analogia
entre estes processos e uma seqüência de corridas em que cada corrida (trajetória
de vida de uma geração) é formada de três elementos: a) um conjunto de
participantes, cada um com um volume de recursos; b) um total de prêmios
(massa salarial); e c) um conjunto de regras. Estas regras estabelecem como os
participantes devem se comportar durante a corrida; como o desempenho
(produtividade) dos participantes será avaliado; e como o total de prêmios será
dividido entre os participantes de acordo com o seu desempenho.
Numa dada seqüência, as diversas corridas podem ter prêmios e regras
completamente distintos. No entanto, os participantes estão intimamente
relacionados na medida em que, em cada corrida, estes são uma geração de um
dado conjunto básico de dinastias e, por conseguinte, o volume de recursos de
cada participante depende do desempenho dos seus antepassados nas corridas
anteriores.2
2Por simplicidade, estamos assumindo que cada filho tem somente um pai e que cada pai somente
um filho.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
4
2.1 - As Etapas da Corrida
Cada corrida possui duas etapas. Na primeira os participantes se preparam para a
competição (esta etapa corresponde ao período da infância e adolescência, em que
os indivíduos acumulam o seu capital humano). Na segunda ocorre a competição
(esta é a etapa na qual os indivíduos competem no mercado de trabalho).
Durante a primeira etapa, cada participante conta com três tipos de recursos para
se preparar para a competição: suas habilidades inatas, recursos públicos e
recursos privados. Os recursos privados de cada participante são os prêmios
(salários) recebidos por seu pai na corrida anterior. Em virtude da heterogeneidade
dos participantes com respeito aos seus recursos, ao final desta etapa haverá, em
geral, alguma desigualdade quanto à preparação para a competição (desigualdade
entre indivíduos quanto ao volume de capital humano acumulado ao entrarem no
mercado de trabalho). A esta desigualdade denominamos desigualdade de
condições e à desigualdade de prêmios ao final da segunda etapa denominamos
desigualdade de resultados.
2.2 - A Etapa de Preparação
Para descrever como a desigualdade de condições é gerada, deve-se tratar três
casos seqüencialmente. Primeiro, considere a situação onde não há recursos
públicos ou privados. Neste caso, o grau de preparação de cada concorrente será
função apenas das suas características inatas.
Em segundo lugar, considere a hipótese em que há, também, recursos públicos.
Neste caso, o grau de preparação de cada concorrente vai depender, inclusive, da
quantidade de recursos públicos de que dispõe e da sua capacidade de utilizar
estes recursos para aprimorar a sua preparação para a competição. Mesmo que os
recursos públicos estivessem igualmente distribuídos, a sua simples existência
leva à desigualdade de condições na medida em que a capacidade de utilizá-los
não é, necessariamente, a mesma para todos os concorrentes.3 Além disso, estes
recursos públicos não estão, necessariamente, igualmente distribuídos entre os
participantes da corrida. Os recursos públicos podem estar desigualmente
distribuídos por duas razões: em primeiro lugar, porque alguns grupos podem
estar sendo discriminados. Em segundo lugar, como os recursos públicos são
intrinsecamente heterogêneos, a qualidade da dotação de recursos de cada
participante vai, necessariamente, diferir.
Finalmente, consideremos o caso em que existam, também, recursos privados.
Nesta hipótese, o grau de preparação de um participante depende, também, do
volume de recursos privados de que dispõe e da sua habilidade de utilizar estes
recursos para aprimorar seu nível de preparação para a competição. Como estes
3Esta capacidade faz parte das características inatas dos participantes que, em geral, não são
homogêneas.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
5
dois fatores estão desigualmente distribuídos entre os participantes, eles serão uma
fonte adicional de desigualdade de condições. O fato de as regras da corrida
permitirem que recursos privados sejam utilizados na fase de preparação
caracteriza-a como uma corrida em que existe desigualdade de oportunidade.4 O
grau de desigualdade de oportunidade será medido pelo impacto marginal médio
que os recursos privados têm sobre o grau de preparação dos participantes.5
2.3 - A Competição
Na competição (mercado de trabalho), o prêmio (salário) dos participantes é
proporcional ao hiato entre um tempo máximo e o tempo reportado de chegada
(produtividade reportada). A competição será dita justa quando o tempo reportado
de um participante for uma função apenas do grau de preparação.6 Denominamos
tempo real de chegada o tempo de chegada de um participante caso a competição
seja justa. Quando esta não é justa, o tempo reportado de chegada pode diferir do
tempo real de chegada devido a alguma dose de dois tipos de injustiça --
segmentação e discriminação -- que iremos descrever a seguir.
Na segmentação, os cronômetros (empregos) utilizados são heterogêneos. Neste
caso, participantes com igual tempo real, designados a cronômetros distintos, terão
tempos cronometrados (produtividades efetivas) distintos. Note-se que aqui a
injustiça não depende das características adscritas dos competidores, na medida
em que competidores com igual tempo real, se designados a um mesmo
cronometrista (empregador), terão um mesmo tempo cronometrado e, além disso,
todos os competidores têm, ex-ante, igual chance de serem alocados aos melhores
cronômetros.
Na discriminação, o tempo reportado (produtividade reportada) pode diferir
mesmo entre participantes com igual tempo cronometrado, tendo em vista que o
tempo de chegada reportado pode diferir do tempo cronometrado de acordo com
as preferências dos cronometristas pelas características dos participantes.
Finalmente, para conhecermos o tempo real de chegada de um participante, temos
que conhecer não só o seu grau de preparação , mas também como o tempo real de
chegada nesta corrida é afetado pelo grau de preparação na competição. Quanto
maior o efeito marginal do grau de preparação de um participante sobre o seu
tempo de chegada, maior será a desigualdade de tempos reais de chegada para
uma dada desigualdade no grau de preparação, ou seja, mais a desigualdade de
4Evidentemente que se o uso dos recursos privados não tem efeito sobre o grau de preparação,
então a simples permissão para o uso destes recursos não deve ser considerada como uma violação
do princípio de igualdade de oportunidade.
5Em geral, devido a uma miríade de fatores exógenos, o grau de preparação vai diferir mesmo
entre participantes com idênticas habilidades inatas e recursos públicos e privados. A este
conjunto de fatores exógenos poderíamos denominar "sorte" na preparação.
6Obviamente, o tempo reportado de um participante também será uma função de uma série de
fatores exógenos que poderíamos chamar de "sorte" na competição.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
6
condições será amplificada na competição. Assim, apesar de uma competição
justa não gerar desigualdade -- funcionando apenas como reveladora da
desigualdade de condições dos participantes --, dependendo da relação entre
preparação e tempo real de chegada esta revelação da desigualdade pode levar a
uma enorme amplificação ou atenuação da desigualdade de condições.
2.4 - Tipos de Desigualdade
O arcabouço construído introduz diversos tipos de desigualdade e mostra como
estes se interconectam permitindo que a desigualdade de resultados possa ser
decomposta em formas mais básicas de desigualdade e que os locais onde a
desigualdade é gerada e transmitida possam ser identificados. Além disso, como
os diferentes tipos de desigualdade são associados a situações de maior ou menor
grau de justiça, é possível, com base nesse arcabouço, identificar os focos de
geração de desigualdade mais socialmente indesejáveis.
Segundo esse arcabouço, a desigualdade de resultados é formada de dois
componentes: aquele que advém das diferenças individuais em preparação e
aquele não relacionado a diferenças em preparação. O segundo componente é
considerado mais social e eticamente indesejável e injustificável e representa a
fração da desigualdade que é gerada durante a competição. Por outro lado, a fração
da desigualdade associada a diferenças individuais em preparação é social e
eticamente justificável, representando a parte da desigualdade apenas revelada,
eventualmente amplificada, mas não gerada na competição. Caso esta
desigualdade seja considerada indesejável, intervenções e mudanças devem ser
feitas na etapa de preparação, de forma a reduzir a heterogeneidade entre os
participantes quanto a sua preparação, isto é, reduzir a desigualdade de condições.
A desigualdade de condições, por sua vez, pode ser classificada tendo por base se
o processo de preparação é ou não caracterizado por igualdade de oportunidade.
Quando diferenças em preparação são adquiridas em circunstâncias marcadas por
igualdade de oportunidades, estas podem ser consideradas justas na medida em
que não criam desigualdade mas apenas revelam desigualdade de habilidades. No
entanto, diferenciais de preparação adquiridos em circunstâncias marcadas por
desigualdade de oportunidades são social e eticamente indesejáveis tanto quanto
as diferenças de premiação de participantes igualmente preparados que ocorrem
devido a discriminação e segmentação na competição.
Contudo, embora estas fontes de desigualdade sejam igualmente indesejáveis, elas
diferem fundamentalmente com respeito ao tipo de intervenção que demandam. A
primeira requer mudanças nas regras da corrida que levem a uma melhoria no grau
de igualdade de oportunidades, enquanto a segunda requer mudanças nas regras da
corrida de tal forma que, durante a competição, participantes similarmente
preparados sejam igualmente tratados.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
7
3 - UMA AVALIAÇÃO EMPÍRICA DO PROCESSO DE GERAÇÃO DA
DESIGUALDADE DE RENDA NO BRASIL
O resultado final do processo de geração da desigualdade tem duas dimensões: o
grau de desigualdade de renda e o grau de mobilidade de renda. A desigualdade de
renda é a desigualdade de resultados. O grau de mobilidade avalia em que medida
os resultados são função da origem familiar. Portanto, a mobilidade calcula tanto
o grau de abertura da sociedade como o grau de injustiça social que deve ser
associado ao grau de desigualdade de resultados reinante na sociedade. Nesta
seção trataremos apenas do grau de desigualdade de renda no Brasil. O grau de
mobilidade de renda será tratado na Seção 6.
O objetivo desta seção é, de acordo com o arcabouço construído na seção anterior:
a) avaliar, com base numa comparação internacional, o grau de desigualdade de
renda no Brasil; b) analisar em que parte da distribuição esta desigualdade está
concentrada; e, c) analisar a evolução da desigualdade de renda no Brasil nas
últimas três décadas.
3.1 - O Grau de Desigualdade de Renda no Brasil
O Brasil possui um elevado grau de desigualdade de renda, se comparado com
outros países no mundo para os quais existem dados sobre a distribuição de renda.
Utilizando como medida de desigualdade a razão entre a proporção da renda
apropriada pelos 10% mais ricos e a proporção da renda apropriada pelos 40%
mais pobres, comparamos o grau de desigualdade de renda entre 55 países no
mundo. Os resultados estão apresentados na Tabela 1 e no Gráfico 1.
Para a grande maioria dos países -- 36 dos 55 países apresentados -- temos que a
renda de um indivíduo entre os 10% mais ricos é, em média, até 10 vezes maior
do que a renda de um indivíduo entre os 40% mais pobres. Na Holanda, por
exemplo, a renda de um indivíduo entre os 10% mais ricos é, em média, menos de
quatro vezes maior do que a de um indivíduo entre os 40% mais pobres. Para a
Argentina esse número é exatamente 10. No caso do Brasil esse número é de uma
ordem de magnitude completamente diferente; a renda de um indivíduo entre os
10% mais ricos é, em média, quase 30 vezes maior do que a renda de um
indivíduo entre os 40% mais pobres. Este fato leva, sem dúvida, o Brasil para uma
posição de destaque entre os vários países no mundo: é aquele que, de longe,
apresenta o mais elevado grau de desigualdade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
8
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
9
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
10
3.2 - A Concentração da Desigualdade
Na seção anterior mostramos que o Brasil possui o mais elevado grau de
desigualdade no mundo. Uma questão que se apresenta, naturalmente, é: em que
parte da distribuição essa desigualdade está concentrada? Com o objetivo de
responder a esta pergunta selecionamos seis países dentre os 55 apresentados
(Estados Unidos, Hungria, Japão, Argentina, Brasil e México) e dividimos sua
população em cinco grupos (veja Gráfico 2). O primeiro grupo é constituído pelos
20% mais pobres, o segundo grupo é constituído pelos 20% seguintes e assim
sucessivamente. Este gráfico mostra, para cada um dos seis países, a razão entre a
renda média dos indivíduos no segundo grupo e a renda média dos indivíduos no
primeiro grupo. Em seguida, observamos a razão entre as rendas médias dos
indivíduos do terceiro e segundo grupos e assim por diante. Esta razão perto de 2
significa que a renda média de um indivíduo no segundo grupo é o dobro da renda
média de um indivíduo no primeiro grupo. Os resultados apresentados no Gráfico
2 revelam que esta razão é acima de 2 para o Brasil, Estados Unidos, México e
Argentina; cerca de 2 no caso da Hungria; e 1,5 no caso do Japão.
As razões entre a renda dos indivíduos no terceiro e segundo grupos e entre a
renda dos indivíduos no quarto e o terceiro grupos são muito parecidas para todos
os países, mas sempre maior no caso do Brasil.
O quadro muda completamente quando observamos a razão entre a renda média
dos indivíduos no quinto e quarto grupos. Estados Unidos, Japão e Hungria
permanecem com uma razão perto de 1,5. Para a Argentina e o México esta
ultrapassa 2 e, no caso do Brasil, chega perto de 4. Isto significa que a renda média
de um indivíduo que se encontra entre os 20% mais ricos da população é cerca de
quatro vezes maior do que a renda de um indivíduo que se encontra entre os 20%
imediatamente anteriores.
No Gráfico 3, procuramos investigar com maior detalhe a natureza deste elevado
diferencial de renda entre o quarto e quinto grupos. Repetimos o exercício anterior
mas agora nos concentrando apenas nos 40% mais ricos. Em primeiro lugar,
calculamos a razão entre a renda média de um indivíduo no nono décimo da
distribuição e a renda média de um indivíduo nos dois décimos anteriores (sétimo
e oitavo). O resultado observado mostra uma razão inferior a 1,5 para Estados
Unidos, Japão, Hungria e Argentina. Brasil e México apresentam uma razão
superior a 1,5, com Brasil liderando novamente. Ao observarmos, contudo, a
razão entre a renda média de um indivíduo pertencente aos 10% mais ricos da
distribuição e a renda média de um indivíduo pertencente aos 10% imediatamente
anteriores, novamente a divergência entre os países aumenta de forma
impressionante. Estados Unidos, Japão e Hungria permanecem abaixo de 1,5.
Argentina e México se destacam em relação aos demais com uma razão de 2,5 e o
Brasil, mais uma vez, assume sua posição de destaque, com uma razão
ultrapassando 3.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
11
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
12
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
13
Em suma, os resultados observados nos Gráficos 2 e 3 mostram, claramente, que a
desigualdade de renda no Brasil concentra-se no cauda superior da distribuição,
isto é, entre os 10% mais ricos.7
3.3 - A Evolução da Desigualdade de Renda no Brasil desde 1960
Não somente a desigualdade é elevada no Brasil como, também, crescente. O
Gráfico 4 apresenta as curvas de Lorenz para 1960, 1970, 1980 e 1990. Este
gráfico revela que a desigualdade de renda experimentou um processo de
crescimento contínuo nos últimos 30 anos. Este processo, apesar de contínuo, não
teve a mesma intensidade em todas as décadas, com o aumento da desigualdade
sendo bastante intenso nas décadas de 60 e 80, mas consideravelmente menor na
de 70.
Além disso, a natureza do crescimento na desigualdade nas décadas de 60 e 80 foi
bastante distinta. Nos anos 60, os grupos que mais sofreram foram aqueles
situados na parte central da distribuição de renda, enquanto nos anos 80, o grupo
que mais sofreu foi aquele localizado na cauda inferior da distribuição. Portanto,
se ao longo destas duas décadas a renda média tivesse se mantido constante, o
aumento da desigualdade nos anos 80 teria levado a um maior aumento da pobreza
do que o aumento da desigualdade nos anos 60.
Há pelo menos duas maneiras de se constatar a natureza distinta do aumento da
desigualdade nas décadas de 60 e 80. Em primeiro lugar, esta diferença pode ser
percebida comparando-se o comportamento, ao longo destas duas décadas, de dois
índices de desigualdade: coeficiente de Gini, que dá um grande peso a mudanças
no centro da distribuição, e a razão entre a fatia da renda apropriada pelos 10%
mais ricos e os 10% mais pobres da distribuição que, por construção, dá um maior
peso a mudanças nas caudas da distribuição. A Tabela 2 revela que enquanto o
coeficiente de Gini varia mais nos anos 60 do que nos anos 80, a razão 10+/10-
varia mais nos anos 80 do que nos anos 60. Este fato confirma que mudanças no
meio da distribuição foram mais importantes durante os anos 60, enquanto
mudanças nas caudas da distribuição foram mais importantes nos anos 80.
7Fizemos este mesmo exercício para as regiões Nordeste e Sul do Brasil. Novamente, podemos
observar que os diferenciais de renda entre os décimos da distribuição, até o nono décimo, são
muito parecidos, situando-se, freqüentemente, abaixo de 1,5. No entanto, quando calculamos a
razão entre a renda média do décimo e nono décimos da distribuição, esta atinge quase 3,5.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
14
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
15
Tabela 2
Desigualdade de renda no Brasil
1960/90
Ano Índice de Gini 10+/10-
1960 0.50 34
1970 0.56 40
1980 0.59 47
1990 0.63 78
Fonte: Barros, Mendonça e Rocha (1993).
Uma outra maneira mais transparente de verificar este mesmo resultado consiste
em comparar a taxa de crescimento da renda média relativa dos décimos da
distribuição.8 Por construção, a média destas taxas de crescimento é,
necessariamente, nula. Assim, para verificar que décimos da distribuição tiveram
ganhos (prejuízos) abaixo (acima) da média basta verificar para que décimos a
taxa de crescimento da renda média relativa foi mais negativa. O Gráfico 5 revela
que na década de 60 foram o sexto e o sétimo décimos da distribuição que
obtiveram o pior desempenho, enquanto nos anos 80 o primeiro e terceiro décimos
da distribuição obtiveram o pior desempenho. Em suma, todas as evidências
demonstram claramente que, enquanto nos anos 80 as camadas mais pobres foram
as que mais sofreram os efeitos do aumento da desigualdade, nos anos 60 a classe
média foi o grupo que mais sofreu com o aumento da desigualdade.
4 - O PAPEL DO MERCADO DE TRABALHO NO PROCESSO DE
GERAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA DESIGUALDADE
Como vimos no arcabouço desenvolvido na Seção 3, não existe um momento no
ciclo de vida das pessoas em que a desigualdade é criada, permanecendo, a partir
de então, inalterada. Ao contrário, desigualdades estão continuamente sendo
criadas, destruídas e, principalmente, transformadas em outras formas de
desigualdade. Assim, o primeiro passo na análise da conexão entre qualquer
instituição (o mercado de trabalho, por exemplo) e a desigualdade observada é
identificar em que medida esta instituição, de fato, gera desigualdade ou apenas
transforma a desigualdade já existente.
8A renda média relativa de um dado décimo da distribuição é definida como a razão entre a renda
média deste décimo e a renda média global. Assim, tem-se que r(i) = 10.(L(i/10) - L((i-1)/10))
onde r(i) é a renda média relativa do i-ésimo décimo da distribuição e L(i/10) é a fração da renda
apropriada pelos i-décimos mais pobres.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
16
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
17
Nesta seção, analisamos as conexões entre o mercado de trabalho e a desigualdade
procurando seguir este princípio básico. Portanto, o primeiro objetivo é determinar
em que medida o mercado de trabalho é um gerador ou apenas um transformador
de desigualdades. Antes, contudo, vamos tratar desta questão teoricamente.
É conveniente imaginar o mercado de trabalho como sendo uma instituição com
duas funções básicas: “casar” trabalhadores com postos de trabalho e determinar a
remuneração de cada trabalhador em cada “casamento” efetivado.
Se todos os trabalhadores e postos de trabalho fossem indistinguíveis, a única
função do mercado de trabalho seria determinar um número, o salário. De fato,
num mundo sem desigualdade entre trabalhadores e entre postos de trabalho os
“casamentos” poderiam ser feitos de forma arbitrária e não haveria razão para
existirem quaisquer diferenças na remuneração dos trabalhadores, isto é, não
haveria desigualdade salarial. Isto posto, para se investigar a conexão entre o
mercado de trabalho e a desigualdade observada é essencial considerar-se um
mercado de trabalho no qual ou os trabalhadores são heterogêneos ou os postos de
trabalho são heterogêneos. O primeiro caso que passamos a discutir é aquele em
que os trabalhadores são heterogêneos e os postos de trabalho homogêneos.
Trabalhadores heterogêneos e postos de trabalho homogêneos
Numa economia na qual os trabalhadores são heterogêneos mas os postos de
trabalho são todos homogêneos, a função alocativa do mercado de trabalho
permanece trivial, pois a alocação dos trabalhadores aos postos de trabalho pode
ser feita de forma arbitrária.9 Assim, a função do mercado de trabalho nesta
economia se limita a determinar o salário de cada tipo de trabalhador. Caso a
solução encontrada seja pagar salários proporcionais à produtividade dos diversos
tipos de trabalhadores, a desigualdade salarial será idêntica à desigualdade de
produtividade e, portanto, não se pode dizer que o mercado de trabalho esteja
gerando desigualdade.10
A hipótese de que os salários nesta economia seriam proporcionais à
produtividade, apesar de ser uma probabilidade importante, é apenas uma das
9Na verdade, a função alocativa do mercado de trabalho só passa a ser não-trivial quando tanto
trabalhadores quanto postos de trabalho são heterogêneos.
10Note-se, no entanto, que a produtividade não é necessariamente proporcional às características
dos trabalhadores como, por exemplo, sua educação. Assim, a desigualdade em produtividade
pode tanto ser maior quanto menor do que a desigualdade em educação, dependendo de como
educação se traduz em produtividade. Como o papel do mercado de trabalho neste caso é apenas
revelar as desigualdades em produtividade, transformando-as em desigualdade salarial, não se pode
dizer que o mercado de trabalho esteja funcionando como gerador de desigualdade. De fato, neste
caso o mercado de trabalho estaria funcionando nitidamente apenas como transformador ou
revelador de desigualdades. Note-se que este será o caso mesmo que a desigualdade salarial seja
bem maior que a desigualdade de características (educação, por exemplo) entre os trabalhadores.
Assim, porque a produtividade dos trabalhadores não é necessariamente proporcional às
características dos trabalhadores, temos que o mercado de trabalho, ao transformar estas diferenças
em desigualdade salarial, poderá tanto ampliá-las como atenuá-las, mas não estará criando ou
eliminando desigualdade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
18
possibilidades. Este caso ocorreria quando a produtividade dos trabalhadores fosse
observável e o mercado de trabalho competitivo. Outras possibilidades merecem,
no entanto, destaque.
Um caso importante é quando a determinação do salário se dá em parte com base
na produtividade e em parte com base em outras características dos trabalhadores.
Um caso simples deste tipo de determinação salarial poderia ser obtido dividindose
o universo de trabalhadores em segmentos de acordo com uma dada
característica destes e fazendo-se com que os salários em cada segmento fossem
proporcionais à produtividade, mas permitindo-se que a constante de
proporcionalidade variasse de acordo com o segmento. Por exemplo, poderíamos
dividir o universo de trabalhadores segundo o gênero e a cor e permitir que o
salário dos homens brancos fosse igual a 120% da sua produtividade, ao passo que
no segmento de mulheres negras o salário seria apenas 80% da sua produtividade.
Na população como um todo, os salários seriam proporcionais à produtividade e,
portanto, a desigualdade salarial seria distinta da desigualdade de produtividade.11
O mercado de trabalho não estaria simplesmente transformando desigualdade mas,
também, criando ou destruindo alguma desigualdade. Neste caso, em que a relação
entre produtividade e salário em postos de trabalho não é a mesma para todos os
tipos de trabalhadores, dizemos que existe discriminação salarial. Se a relação
entre produtividade e salário varia por gênero ou raça, dizemos que existe
discriminação salarial por gênero ou raça, respectivamente.
Em geral, discriminação salarial leva a que a desigualdade salarial seja maior que
a desigualdade de produtividade, mas há exceções. Se os grupos discriminados
tiverem níveis de produtividade acima dos grupos não-discriminados, é possível
que a discriminação reduza a desigualdade. De fato, todo sistema de taxação
progressivo discrimina os mais produtivos e com isso reduz a desigualdade. Da
mesma forma, nas economias socialistas observamos que os salários crescem
muito menos com o nível educacional dos trabalhadores do que nas economias
capitalistas. Assim, parte do sucesso em reduzir a desigualdade alcançado pelas
economias socialistas advém da discriminação salarial baseada na educação.
Assim, segundo esta definição, a discriminação pode, por um lado, ocorrer com
respeito a qualquer característica do trabalhador, devendo esta característica ter ou
não influência sobre produtividade, e, por outro, pode tanto levar a uma elevação
quanto a uma redução da desigualdade. No seu senso mais comum, no entanto, a
discriminação tende a se referir apenas aos casos nos quais a característica é
adscrita e não tem efeito sobre a produtividade, com os exemplos típicos sendo a
discriminação salarial por gênero e raça. Note-se, no entanto, que mesmo neste
caso a discriminação pode levar a reduções na desigualdade. Por exemplo, uma
eventual discriminação salarial contra descendentes de japonês no Brasil pode
levar a reduções na desigualdade se, por causa do seu maior nível de qualificação
profissional, este grupo tem níveis de produtividade mais elevados. Este exemplo
11 Cumpre mencionar que a esta altura ainda não é possível determinar se a desigualdade salarial
será maior ou menor que a desigualdade em produtividade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
19
simplesmente mostra que nem todos os tipos de redução de desigualdade são
desejáveis.
Até o momento consideramos apenas o caso em que todos os postos de trabalhos
são homogêneos. Nesta circunstância o mercado de trabalho apenas transforma a
desigualdade quando os salários são proporcionais à produtividade, mas gera ou
elimina a desigualdade caso haja discriminação salarial. A seguir, o caso oposto
será considerado, isto é, aquele em que os trabalhadores são homogêneos e os
postos de trabalho heterogêneos.
Trabalhadores homogêneos e postos de trabalho heterogêneos
A heterogeneidade entre os postos de trabalho pode se manifestar de variadas
formas. Para o estudo da conexão entre o mercado de trabalho e a desigualdade de
resultados observada o que importa é a heterogeneidade dos postos de trabalho
com respeito à produtividade do trabalho, pois é este tipo de heterogeneidade que
gera desigualdade salarial.
Caso a heterogeneidade dos postos de trabalho não se traduza em diferenças de
produtividade, esta dificilmente levará à desigualdade salarial. Por exemplo,
consideremos uma economia em que existam dois setores produtivos, cada um
empregando uma fração da força de trabalho. Se o mercado de trabalho for
competitivo e a força de trabalho homogênea, o valor da produtividade marginal
do trabalho será igual nos dois setores e igual ao salário pago a todos os
trabalhadores. Nesta economia não existirá desigualdade de produtividade ou
salarial entre trabalhadores ou setores. Apesar disso, os postos de trabalho são
distintos no sentido de que os trabalhadores num setor podem estar produzindo
sapatos enquanto no outro setor produzem meias e, portanto, desempenham
tarefas completamente distintas.
Apesar de importante em outros contextos, para o estudo da relação entre o
mercado de trabalho e a desigualdade, este tipo de heterogeneidade será ignorado.
Assim, dizemos que existe heterogeneidade entre postos de trabalho se, e somente
se, existe heterogeneidade com respeito à produtividade.
Num mercado de trabalho em que existe este tipo de heterogeneidade entre os
postos de trabalho, desde que haja uma relação entre produtividade e salário,
encontrar-se-á sempre desigualdade salarial. Neste caso, diz-se que o mercado de
trabalho é segmentado, com cada segmento do mercado sendo formado por postos
de trabalho homogêneos com respeito a produtividade e salário.
Quando o mercado de trabalho é segmentado, ele claramente se comporta gerando
desigualdade. De fato, nesta condição, a força de trabalho é homogênea mas existe
desigualdade salarial e, portanto, o mercado de trabalho não está revelando
nenhuma desigualdade de produtividade intrínseca aos trabalhadores. Ao
contrário, o mercado de trabalho está gerando desigualdade de produtividade e
salarial entre trabalhadores intrinsecamente homogêneos.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
20
Trabalhadores heterogêneos e postos de trabalho heterogêneos
O caso em que os dois lados do mercado são heterogêneos (trabalhadores e postos
de trabalho) é, em certo sentido, apenas um somatório das análises anteriores.
Assim, se os salários forem proporcionais à produtividade, a desigualdade salarial
irá refletir em parte a desigualdade de produtividade intrínseca aos trabalhadores e
em parte a heterogeneidade de produtividade dos postos de trabalho. Portanto, o
mercado de trabalho estará, por um lado, transformando a desigualdade de
características dos trabalhadores em desigualdade salarial e, por outro, gerando
desigualdade salarial a partir da desigualdade de produtividade entre os postos de
trabalho. Em suma, o mercado de trabalho estará não somente transformando, mas
também gerando desigualdade.
Se, além disso, o mercado de trabalho permitir que a relação entre salário e
produtividade seja diferente para trabalhadores com distintas características, então
haverá discriminação salarial e, por conseguinte, algum impacto sobre o grau de
desigualdade salarial deverá ser verificado.12
No entanto, este somatório das possibilidades anteriores não as esgota quando os
dois lados do mercado são heterogêneos. O aspecto novo neste caso de dupla
heterogeneidade é o fato de que agora o “casamento” entre trabalhadores e postos
de trabalho não é mais trivial. Ao contrário do que ocorria quando apenas um lado
do mercado era heterogêneo, agora o grau de desigualdade salarial depende de
como o “casamento” é feito. De fato, o grau de desigualdade pode ser minimizado
se o “casamento” entre trabalhadores e postos de trabalho se der de forma a que os
trabalhadores mais produtivos sejam alocados a postos de trabalho menos
produtivos, enquanto os trabalhadores menos produtivos sejam alocados a postos
de trabalho mais produtivos. Uma alocação na qual prevaleça uma relação direta
entre a produtividade do trabalhador e do posto de trabalho levará à maximização
do grau de desigualdade.
O reconhecimento de que o processo de alocação de trabalhadores a postos de
trabalho tem impacto sobre o grau de desigualdade é só o primeiro passo. Para
podermos avaliar a conexão entre o mercado de trabalho e o grau de desigualdade
de resultados, resta saber em que medida o impacto sobre o grau de desigualdade
deve ser caracterizado apenas como uma transformação da desigualdade já
existente ou como um processo de criação (destruição) desta.
Com o objetivo de resolver esta questão é necessário estabelecer qual seria o
“casamento” desejável entre trabalhadores e postos de trabalho. Consistentemente
com o princípio de assumir como justas as diferenças em produtividade advindas
de diferenças de produtividade intrínsecas aos trabalhadores, consideramos como
justa a alocação de trabalhadores a postos de trabalho que maximiza o produto
nacional. Por conseguinte, se a desigualdade gerada pelo mercado de trabalho for
12Em geral, espera-se que alguma desigualdade salarial seja gerada em função da discriminação
salarial, mas pode ocorrer que a discriminação salarial leve, como vimos anteriormente, à redução
no grau de desigualdade, tudo dependendo de que grupo esteja sendo discriminado.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
21
maior (menor) do que a que seria gerada pela alocação que maximiza o produto
nacional, diremos que o mercado de trabalho gera (reduz) desigualdade.
A alocação ótima irá depender da complementaridade ou substituibilidade entre a
produtividade dos trabalhadores e dos postos de trabalho. Se existe
complementaridade -- isto é, se a diferença de produção entre um trabalhador bom
(alta produtividade) e um ruim (baixa produtividade) é maior num posto de
trabalho bom (alta produtividade) do que num ruim (baixa produtividade) --,
então, a alocação ótima será aquela em que os melhores trabalhadores são
alocados aos melhores postos de trabalho e os piores trabalhadores aos piores
postos de trabalho. Se existe substituibilidade -- isto é, se a diferença de produção
entre um trabalhador bom e um ruim é menor num posto de trabalho bom do que
num ruim --, então, a alocação ótima será aquela na qual os melhores
trabalhadores são alocados aos piores postos de trabalho e os piores trabalhadores
aos melhores postos de trabalho.
Portanto, se há complementaridade entre a produtividade dos trabalhadores e dos
postos de trabalho, a desigualdade tenderá a ser maior do que se houver
substituibilidade.
A alocação gerada pelo mercado de trabalho poderá diferir da alocação ótima de
uma variedade de formas e por diversas razões. No entanto, existe um caso que
merece particular atenção. Suponhamos que a população seja decomposta em um
determinado número de grupos e que as chances de os membros destes grupos
serem alocados aos melhores postos de trabalho sejam alteradas (em relação à
alocação ótima), de forma a beneficiar alguns grupos e a prejudicar outros. Neste
caso, o mercado de trabalho estará gerando ou reduzindo desigualdade via
manipulação do processo de alocação e, portanto, nos referiremos a esta situação
como discriminação alocativa. Assim, se mulheres e negros com igual
qualificação à dos homens brancos têm um acesso mais restrito às melhores
ocupações e ramos de atividade no mercado de trabalho, diremos que existe
discriminação alocativa por gênero e raça, respectivamente.
Em suma, num mercado de trabalho duplamente heterogêneo, a discriminação
pode ocorrer de duas formas: a) a salarial -- em que os trabalhadores com idêntica
produtividade mas pertencentes a diferentes grupos recebem salários distintos; e
b) a alocativa -- em que os trabalhadores com idêntica produtividade mas
pertencentes a diferentes grupos têm acesso diferenciado aos melhores postos de
trabalho.
Nas seções que se seguem procuraremos com base nas evidências empíricas
existentes avaliar se o mercado de trabalho brasileiro gera ou apenas transforma a
desigualdade. Mais especificamente, procuraremos estimar que parcela da
desigualdade salarial é gerada pelo mercado de trabalho via segmentação e
discriminação e que parcela é apenas o resultado da transformação da
desigualdade intrínseca da força de trabalho.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
22
4.1 - Segmentação do Mercado de Trabalho
Diversas formas de segmentação do mercado de trabalho brasileiro têm sido
sistematicamente investigadas. Nesta seção serão discutidos os resultados
referentes a três tipos de segmentação. Em primeiro lugar, enfocaremos a
magnitude dos diferenciais salariais por ramo de atividade. Em segundo lugar,
discutiremos os diferenciais salariais entre formal e informal. Finalmente, em
terceiro lugar, analisaremos o grau de segmentação regional do mercado de
trabalho brasileiro.
No que se refere à segmentação, uma análise da conexão entre o mercado de
trabalho e o grau de desigualdade observado deve procurar elucidar ao menos três
tipos de questões: qual a contribuição de cada forma de segmentação do mercado
de trabalho para a desigualdade salarial? Como os melhores postos de trabalho são
alocados e que grupos encontram-se super-representados nos melhores segmentos
do mercado de trabalho? Quais as principais razões para a segmentação do
mercado de trabalho brasileiro?
A resposta à primeira questão nos fornece uma medida da importância quantitativa
de cada forma de segmentação no mercado de trabalho. Uma resposta à segunda
revela como e que grupos se beneficiam desta fonte de desigualdade. A terceira
questão, ao investigar as origens da segmentação, é fundamental ao desenho de
políticas de combate à desigualdade baseadas na redução do grau de segmentação
do mercado de trabalho.
Antes de passarmos a uma discussão específica de cada um destes tipos de
segmentação, é importante, no entanto, ressaltar uma dificuldade metodológica
comum não só aos estudos de segmentação mas também aos de discriminação.
Apesar de podermos facilmente observar a diferença entre os salários médios em
distintos segmentos do mercado de trabalho ou grupo de trabalhadores, estas
diferenças não são estimativas não-viesadas do grau de segmentação. O viés surge
do fato de a qualidade (produtividade intrínseca) dos trabalhadores alocados aos
diversos segmentos não ser necessariamente igual. Assim, o simples fato de o
ramo de atividade A pagar salários, em média, maiores do que o ramo de atividade
B não implica necessariamente que os postos de trabalho em A são mais
produtivos do que aqueles em B. É possível que o salário médio seja maior em A
simplesmente porque a força de trabalho empregada em A é intrinsecamente mais
produtiva do que aquela empregada em B.
Portanto, para se estimar o verdadeiro grau de segmentação do mercado de
trabalho seria necessário comparar o salário de trabalhadores com produtividade
intrínseca idêntica alocados a segmentos distintos, uma vez que o grau de
segmentação é, por definição, o diferencial de salário entre trabalhadores
igualmente produtivos. Embora seja impossível comparar os salários de
trabalhadores com idêntica produtividade intrínseca, uma vez que esta não é
diretamente observável e apenas parte das características relevantes dos
trabalhadores é observável, os estudos sobre segmentação tentam resolver esta
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
23
questão de forma pragmática, comparando apenas trabalhadores que são idênticos
com respeito a um certo conjunto de características observáveis. Como este
conjunto de características nunca inclui todas as características relevantes, varia de
estudo para estudo e as estimativas do grau de segmentação são sensíveis a que
características são utilizadas na análise, os resultados encontrados nos diversos
estudos existentes não são nem necessariamente estimativas não-viesadas do
verdadeiro grau de segmentação nem são estritamente comparáveis. Apesar destas
limitações, estes estudos nos dão uma clara indicação da importância da
segmentação do mercado de trabalho para a geração da desigualdade salarial e,
portanto, é fundamental discuti-los com detalhe.
4.1.1 - Segmentação por ramo de atividade
A Tabela 3 apresenta estimativas dos diferenciais salariais entre 23 ramos de
atividade dos setores secundário e terciário da economia. As estimativas nesta
tabela foram obtidas comparando-se o salário apenas de trabalhadores com
características observáveis idênticas.13
Esta tabela revela que o nível salarial médio por ramo de atividade varia entre
46% acima da média na indústria de material de transportes a 38% abaixo da
média em serviços de limpeza e conservação.14 Em outras palavras, a segmentação
do mercado de trabalho por ramo de atividade leva a que o nível salarial de
trabalhadores com características observáveis idênticas chegue a ser, em certos
ramos de atividade, cerca de 2,4 (2.4=1.46/0.62) vezes maior.
13Uma descrição precisa do conjunto de características observáveis utilizado é apresentada na
Tabela 3. A metodologia empregada encontra-se descrita em Barros e Mendonça (1995).
14Os diferenciais salariais reportados são aqueles entre o logaritmo de médias geométricas e,
portanto, aproximações para a variação percentual na média geométrica. Em geral, é possível
converter qualquer variação logarítmica, b, em uma variação percentual, utilizando-se o fato de
que a=EXP(b)-1. Assim, EXP(0.38)-1=0.46 (indústria de material de transporte).
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
24
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
25
Este diferencial, no entanto, apesar de expressivo, refere-se à comparação dos
extremos. Em geral, os diferenciais salariais por ramo de atividade são bem
menores. De fato, a Tabela 3 e o Gráfico 6 revelam que 30% da força de trabalho
encontram-se alocados a ramos de atividade com níveis salariais que são mais de
25% acima ou abaixo da média. Em outras palavras, para 70% da força de
trabalho o grau de segmentação por ramo de atividade é relativamente reduzido.
Na verdade, metade da força de trabalho localiza-se em ramos de atividade com
desvios salariais em relação à média inferiores a 20%.
Com o objetivo de avaliar a importância da contribuição da segmentação por ramo
de atividade para a desigualdade salarial total é conveniente responder à seguinte
pergunta: em quanto a desigualdade salarial global no Brasil seria reduzida se os
diferenciais de salário por ramo de atividade entre trabalhadores com idênticas
características observáveis fossem eliminados, tudo o mais permanecendo
constante? Isto é, se fosse possível eliminar toda a segmentação do mercado de
trabalho por ramo de atividade, em quanto a desigualdade salarial global seria
reduzida? Infelizmente a resposta a esta pergunta é bastante dependente da
metodologia utilizada. No entanto, diversas tentativas de estimar este parâmetro
para o Brasil obtiveram resultados razoavelmente próximos, todos se localizando
no intervalo de 5 a 15%, isto é, estima-se que a segmentação por ramo de
atividade no Brasil não deve ser responsável por mais do que 15% da
desigualdade salarial gerada no Brasil [ver Branco (1979) e Barros e Mendonça
(1995)]. Embora 15% sejam uma contribuição significativa, esta certamente não
coloca este tipo de segmentação como um dos principais focos de geração de
desigualdade no Brasil. Esta conclusão é de grande importância pois, por um
longo período de tempo, acreditou-se que a heterogeneidade produtiva da
economia brasileira fosse a principal causa do elevado grau de desigualdade
observado no país. Os resultados reportados nos estudos mencionados revelam
que esta crença é simplesmente falsa.
Com respeito aos grupos que se beneficiam deste tipo de segmentação, o Gráfico
7 apresenta alguma evidência de que estes tendem a ser aqueles segmentos da
força de trabalho com níveis educacionais mais elevados. Conforme mencionado
no início desta seção, esta associação positiva entre a qualidade dos postos de
trabalho (salário) e dos trabalhadores (educação) tende a levar a níveis de
desigualdade salarial superiores aos que seriam observados caso esta associação
não existisse.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
26
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
27
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
28
Isto posto, é fundamental definir não somente em que medida esta associação
positiva é determinada por motivos ligados à busca de uma alocação eficiente de
trabalhadores aos postos de trabalho, mas também em que medida esta associação
positiva advém da discriminação baseada diretamente na escolaridade dos
trabalhadores ou em outras características que estejam associadas à escolaridade,
como é o caso da cor no Brasil. Infelizmente, o conhecimento atual sobre o
funcionamento do mercado de trabalho brasileiro não permite que se faça este tipo
de decomposição.
Com respeito aos fatores determinantes do grau de segmentação do mercado de
trabalho brasileiro, pelo menos quatro aspectos têm sido sistematicamente
investigados: a) concentração industrial; b) estágio tecnológico; c) proteção
tarifária; e d) crescimento.
Concentração industrial
Com respeito à relação entre o nível salarial e a concentração industrial, Branco
(1979) mostra que, pelo menos entre os ramos da indústria, existe uma clara
associação positiva entre concentração industrial e nível salarial, isto é, os ramos
de atividade que apresentam maior grau de concentração são aqueles em que os
salários são mais elevados. As causas desta associação, que de resto são comuns a
diversas economias no mundo, infelizmente são pouco conhecidas. Acredita-se,
no entanto, que nos ramos de atividade mais concentrados a existência de lucros
extraordinários serviria como um incentivo adicional para maior organização dos
trabalhadores que, portanto, teriam poder de barganha suficiente para se apropriar
de parte dos lucros extraordinários do ramo de atividade ao qual pertencem.
Estágio tecnológico
Um segundo fator comumente relacionado à segmentação por ramo de atividade
seriam as diferenças no estágio tecnológico das empresas em cada ramo de
atividade. Branco (1979) procura examinar esta possibilidade e encontra apenas
evidências parciais de que empresas mais ativas na adoção de novas tecnologias
tendem a pagar salários mais elevados. Embora se possa dizer que exista
substancial evidência anedótica que corrobore a existência de tal associação,
pouca fundamentação teórica e empírica dando suporte a esta hipótese tem sido
apresentada até o momento.
Proteção tarifária
Um terceiro fator comumente associado à segmentação por ramo de atividade é a
proteção tarifária diferenciada percebida pelos diversos ramos de atividade.
Apesar de bastante popular, esta hipótese não possui um respaldo empírico sólido.
Na verdade, Branco (1979) não encontra em seu estudo evidência alguma de
relação positiva entre nível salarial e proteção tarifária.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
29
Crescimento
Finalmente, tem-se procurado demonstrar que os ramos de atividade que crescem
mais rapidamente tendem a pagar salários mais elevados. Esta associação existiria,
pelo menos em parte, na medida em que estes ramos de atividade estariam,
continuamente, tentando atrair novos trabalhadores. Novamente, Branco (1979)
apresenta claras evidências empíricas em favor da existência desta associação. É
importante observar, como o faz o autor, que se esta é uma das razões
fundamentais para a segmentação, então, por um lado a segmentação deveria ser
intensa em períodos em que houvesse crescimento diferenciado dos ramos de
atividade (durante aqueles de reestruturação industrial) mas, por outro, a
segmentação deveria ser dramaticamente reduzida em períodos de crescimento
balanceado. Em outras palavras, se esta é a causa da segmentação por ramo de
atividade, então esta forma de segmentação deve ser encarada mais como uma
componente conjuntural da desigualdade do que uma componente
verdadeiramente estrutural.
4.1.2 - Segmentação entre os setores formal e informal
Existem ao menos duas possibilidades para a divisão do mercado de trabalho em
um segmento formal e outro informal. Em primeiro lugar, tem-se a dicotomia
entre empregados e trabalhadores por conta própria. Em segundo lugar, tem-se a
divisão dos empregados de acordo com a posse ou não de uma carteira de trabalho
assinada. Embora exista alguma disputa, em grande medida puramente semântica,
sobre qual destas duas possibilidades para a divisão do mercado de trabalho deve
prevalecer, a análise contida nesta subseção entende a segmentação formalinformal
como a união destas duas possibilidades, isto é, a divisão do mercado de
trabalho em três segmentos: empregados com carteira assinada, empregados sem
carteira assinada e trabalhadores por conta própria.
Para avaliarmos a importância da segmentação formal-informal para a geração da
desigualdade é importante considerarmos três etapas. Em primeiro lugar, podemos
estimar o diferencial salarial entre trabalhadores idênticos nos três segmentos do
mercado de trabalho. Amadeo et alii (1994) apresentam estimativas desta natureza
obtidas comparando-se os salários de trabalhadores com características
observáveis idênticas, porém localizados em diferentes segmentos do mercado de
trabalho. As estimativas por eles obtidas variam ao longo do tempo. No entanto,
os resultados alcançados mostram que a renda média dos trabalhadores por conta
própria varia de 60 a 80% daquela de um empregado com carteira e a de um
empregado sem carteira varia de 60 a 70% da renda de um empregado com
carteira.
Estes diferenciais de salário são na verdade da mesma ordem de magnitude que os
diferenciais por ramo de atividade. Assim, apesar de expressivos, estes são
insuficientes para explicar uma parcela significativa da desigualdade salarial no
Brasil. De fato, se estes diferenciais de salário fossem eliminados, tudo o mais
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
30
permanecendo constante, o grau de desigualdade salarial no Brasil seria reduzido
em menos de 7%.
Isto posto, poder-se-ia pensar que se por um lado a segmentação por ramo de
atividade e a segmentação formal-informal, isoladamente, não explicam muito da
desigualdade salarial observada, por outro, em conjunto, poderiam explicar uma
parcela significativa desta desigualdade. Tal raciocínio, no entanto, seria falacioso
pois estas duas formas de segmentação não se somam. Ao contrário, o grau de
segmentação formal-informal como estimado por Amadeo et alii (1994) capta, em
parte, a segmentação por ramo de atividade. De fato, os salários dos empregados
sem carteira são mais baixos, em parte, devido ao fato de que a proporção de
trabalhadores sem carteira é relativamente mais baixa nos ramos de atividade com
altos salários (indústria) e relativamente mais elevada nos ramos com baixos
salários (serviços).
Assim, para se avaliar a contribuição líquida da segmentação formal-informal para
a geração da desigualdade seria necessário que se estimasse, por exemplo, o
diferencial de salário entre empregados com e sem carteira não só com idênticas
características, mas também trabalhando no mesmo ramo de atividade.
Estimativas deste tipo formam uma segunda etapa na avaliação da contribuição da
segmentação formal-informal para a desigualdade salarial. Barros e Mendonça
(1995) e Barros, Reis e Rodriguez (1991) apresentam estimativas deste tipo para o
diferencial entre trabalhadores com e sem carteira. Apesar de Barros e Mendonça
(1995) analisarem todos os ramos de atividade, e Barros, Reis e Rodriguez (1991)
se restringirem à construção civil, os resultados obtidos em ambos os estudos são
similares: empregados sem carteira recebem de 75 a 85% do salário dos
empregados com carteira que possuem as mesmas características observadas e que
trabalham no mesmo ramo de atividade. Infelizmente, não existem estudos
similares que tratem do diferencial entre empregados com carteira e trabalhadores
por conta própria no mesmo ramo de atividade. No entanto, se assumirmos que os
resultados para os trabalhadores por conta própria são similares, podemos concluir
que se este tipo de segmentação fosse eliminado, tudo o mais permanecendo
constante, a desigualdade global se reduziria em menos de 1%.
Existe, no entanto, uma terceira etapa que deveria ser considerada antes que se
pudesse determinar a contribuição da segmentação formal-informal para a
desigualdade salarial. Este terceiro passo se baseia no reconhecimento de que
parte das diferenças entre postos de trabalho formais e informais se deve, na
verdade, a diferenças nas ocupações desempenhadas pelos trabalhadores. Segundo
esta argumentação, deveríamos comparar o salário dos empregados sem carteira
com o dos empregados com carteira não apenas com as mesmas características
observáveis e trabalhando no mesmo ramo de atividade, mas também
desempenhando a mesma ocupação. Existem argumentos a favor e contra este
princípio, dependendo se a ocupação é considerada uma característica do
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
31
trabalhador ou do posto de trabalho.15 Contudo, se a análise se limita a comparar
empregados com e sem carteira na mesma ocupação, os diferenciais de salário se
reduzem a algo entre 5 e 10% e a contribuição deste tipo de segmentação para a
geração da desigualdade praticamente desaparece.
Em suma, apesar de os diferenciais salariais entre trabalhadores com
características observáveis idênticas em postos de trabalho formais e informais
serem da mesma ordem de magnitude dos diferenciais salariais por ramo de
atividade, grande parte destes diferenciais é simplesmente uma conseqüência de os
postos de trabalho informais estarem super-representados nos ramos de atividade
que pagam baixos salários e devido a diferenças na estrutura ocupacional dos
segmentos formais e informais da economia.
4.1.3 - Segmentação regional
As disparidades regionais no Brasil têm sido sistematicamente consideradas como
uma das principais causas do elevado grau de desigualdade e, portanto, têm
inspirado uma série de políticas visando combatê-las ou amenizar suas
conseqüências. Não existe, no entanto, apenas um tipo de desigualdade regional.
De fato, as disparidades regionais se apresentam numa variedade de formas. Nesta
seção, procuramos discutir uma das facetas deste tipo de desigualdade: a
segmentação regional do mercado de trabalho. Em que medida trabalhadores com
idênticas características, alocados a postos de trabalho em diferentes áreas
geográficas do país, recebem salários distintos? Se é verdade que tais diferenciais
existem, qual a sua contribuição para a desigualdade salarial observada?
O estudo de Savedoff (1990) sobre os diferenciais regionais de salário no Brasil
oferece respostas bastante satisfatórias para estas questões. A Tabela 4, construída
com base em seu estudo, mostra duas estimativas para os diferenciais de salário
entre as nove regiões metropolitanas brasileiras. As estimativas apresentadas na
terceira coluna representam os diferencias de salário de cada região metropolitana
em relação à média, quando comparamos trabalhadores com idênticas
características pessoais observadas. A quarta coluna da tabela representa os
diferenciais de salário de cada região metropolitana em relação à média, quando
comparamos trabalhadores com idênticas características pessoais observadas e
que, além disso, trabalham na mesma ocupação e no mesmo ramo de atividade.
15Se a ocupação é uma característica do trabalhador, o controle deve ser feito por ela. Se a
ocupação é uma característica do posto de trabalho, então, não é claro qual o procedimento que se
deve tomar.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
32
Tabela 4
Diferenciais regionais de salário controlados
por características pessoais -- 1985
Região
metropolitana
Proporção
da
PEA
(%)
Diferenciais
não-controlados por
características do
emprego
Diferenciais
controlados por
características do
emprego
Belém 2.4 -14.0 -9.9
Fortaleza 4.1 2.3 4.8
Recife 5.6 -12.0 -9.9
Salvador 5.0 3.8 5.3
Belo Horizonte 8.2 6.6 6.1
Rio de Janeiro 24.4 -19.7 -17.1
São Paulo 38.2 9.9 7.5
Curitiba 5.1 25.5 25.4
Porto Alegre 6.9 2.7 2.6
Fonte: Tabulação feita com base nos dados contidos em Savedoff (1990).
Esta tabela revela dois fatos importantes. Em primeiro lugar, apesar de existirem
diferenciais de salário inter-regionais entre trabalhadores com características
observáveis idênticas, estes são relativamente pequenos. Uma comparação com os
diferencias por ramo de atividade é relevante neste ponto. Enquanto no caso dos
diferenciais por ramo de atividade cerca de 50% da força de trabalho estavam
alocados ramos de atividade com níveis salariais que diferiam da média (para
baixo ou para cima) em menos de 20%, no caso dos diferenciais inter-regionais
apenas Curitiba (8% da população das regiões metropolitanas brasileiras) tem um
salário médio que se desvia da média global em mais de 20%. O Gráfico 6
corrobora este resultado ao revelar que, para qualquer valor que se considere, a
proporção da força de trabalho alocada a ramos de atividade com desvios em
relação à média superior a este dado valor é sempre maior que a correspondente
proporção para regiões metropolitanas.
Em segundo lugar, a Tabela 4 demonstra que a magnitude das diferenças interregionais
não são significativamente modificadas quando se restringe a
comparação inter-regional a não somente trabalhadores com idênticas
características pessoais observadas, mas também que estejam trabalhando no
mesmo grupo ocupacional e no mesmo ramo de atividade. Ao contrário do que
observamos com a segmentação formal-informal, a regional não é de forma
alguma simplesmente um reflexo da segmentação por ramo de atividade, isto é,
uma conseqüência da segmentação por ramo de atividade acoplada com diferenças
regionais significativas na estrutura do emprego por ramo de atividade. Assim, por
exemplo, o fato de que o setor industrial é mais importante em São Paulo do que
em Recife explica apenas uma parte do diferencial salarial entre as duas regiões.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
33
O estudo de Savedoff (1990) permite, também, estimarmos qual a contribuição da
segmentação regional do mercado de trabalho para a desigualdade salarial. Isto é,
em quanto o grau de desigualdade salarial seria reduzido se a segmentação
regional fosse eliminada, tudo o mais permanecendo constante. Em consonância
com as evidências apresentadas nas Tabelas 3 e 4, tem-se que a contribuição da
segmentação regional é bem inferior à da segmentação por ramo de atividade.
Caso a segmentação regional fosse eliminada, o grau de desigualdade seria
reduzido em algo entre 2 e 5%.
Finalmente, deve-se discutir o papel da alocação regional dos postos de trabalho
sobre o grau de desigualdade. De um ponto de vista regional, os melhores postos
de trabalho estão sendo alocados prioritariamente aos trabalhadores com maior
qualificação, levando à exacerbação da desigualdade salarial? Embora uma
resposta mais precisa a esta questão necessite maior investigação, algumas das
evidências existentes demonstram que a resposta a esta pergunta é negativa. Por
exemplo, o Rio de Janeiro, região metropolitana com a força de trabalho
possuindo maior grau de escolaridade, está entre as regiões oferecendo os piores
salários.
Se, por um lado, a ordenação das regiões segundo a qualidade dos postos de
trabalho (salário) não coincide com a ordenação segundo a qualidade da força de
trabalho (educação) -- o que implica que desta vez não são os trabalhadores
qualificados os grandes beneficiários da segmentação regional --, por outro, existe
uma clara correlação entre regiões com altos salários e composição racial.
Claramente os trabalhadores pretos e pardos encontram-se super-representados nas
regiões com baixos salários (Belém, Recife e Rio de Janeiro), com o inverso
ocorrendo com os trabalhadores brancos e amarelos. Em outras palavras, no caso
da segmentação regional existe uma importante interação com a discriminação
racial, com os grupos racialmente discriminados apresentando, também, uma
considerável desvantagem locacional.
4.2 - Discriminação no Mercado de Trabalho
Discriminação é o tratamento desigual de indivíduos com iguais características
baseado no grupo, classe ou categoria a que pertencem. O tratamento desigual de
indivíduos com iguais características representa um importante desvio do ideal de
igualdade de oportunidades e, portanto, qualquer forma de discriminação é uma
fonte de preocupação social.
Na Seção 4 distinguimos entre dois tipos de discriminação que podem ocorrer no
mercado de trabalho: discriminação salarial e discriminação alocativa. A
discriminação salarial ocorre quando trabalhadores igualmente produtivos,
alocados a postos de trabalho de mesma produtividade, recebem salários distintos.
A discriminação alocativa surge quando trabalhadores igualmente produtivos têm
chances diferentes de ocupar postos de trabalho de alta produtividade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
34
Vale relembrar que pode haver diferencial de salário entre dois grupos de
trabalhadores, brancos e pretos por exemplo, sem que aconteça discriminação
salarial ou alocativa. Para que isto ocorra é suficiente que existam diferenças no
nível da produtividade intrínseca dos dois grupos. Assim, o diferencial salarial
entre dois grupos pode ser decomposto em três partes: diferenças no grau de
produtividade entre os grupos, discriminação salarial e discriminação alocativa.
Nesta seção, por estarmos interessados apenas na relação entre mercado de
trabalho e desigualdade, nos limitaremos à análise da discriminação salarial e
alocativa. É importante, no entanto, que não se conclua desta opção que as
diferenças em produtividade entre grupos não estão relacionadas à discriminação.
Na verdade, grande parte das diferenças de produtividade advém de discriminação
e outras formas de desigualdade de oportunidade que ocorrem em instituições prémercado
de trabalho.16
Embora se possa argumentar que exista, em alguma medida, discriminação contra
e a favor a qualquer característica humana observável, de um ponto de vista
quantitativo dois tipos de discriminação têm se mostrado particularmente
relevantes: a) a discriminação por gênero; e b) a discriminação racial. Assim, a
seguir procuramos avaliar a contribuição de cada um destes tipos de discriminação
à formação da desigualdade no Brasil.
4.2.1 - Discriminação por gênero
A Tabela 5 apresenta a evolução do diferencial salarial por gênero ao longo da
década de 80. Conforme esta tabela revela, este diferencial de salário é
substancial. O salário dos homens é, em média, 42% maior do que o salário das
mulheres. Esta tabela também revela que durante toda a década de 80 não houve
nenhuma tendência ao declínio deste diferencial.
16A questão da discriminação pré-mercado de trabalho será tratada como um dos elementos na
geração da desigualdade de produtividade entre trabalhadores na Seção 7.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
35
Tabela 5
Discriminação por gênero
Ano Diferencial
salarial
Discriminação
alocativa
Discriminação
salarial
Diferenças em
produtividade
1981 0.55 -0.04 0.57 0.02
1982 0.55 -0.01 0.55 0.02
1983 0.56 -0.03 0.55 0.04
1984 0.57 -0.03 0.57 0.03
1985 0.57 -0.04 0.57 0.04
1986 0.53 -0.06 0.56 0.04
1987 0.53 -0.05 0.55 0.03
1988 0.52 -0.08 0.55 0.04
1989 0.52 -0.09 0.57 0.04
Média 0.54 -0.05 0.56 0.03
Fonte: Tabulação feita com base nos dados contidos em Barros, Ramos e Santos
(1995).
Com o objetivo de determinar que parcela deste diferencial deve-se a diferenças
em produtividade e à discriminação salarial e alocativa, a Tabela 5 apresenta os
resultados de uma análise de decomposição realizada por Barros, Ramos e Santos
(1995). Na segunda coluna desta tabela são apresentadas estimativas dos
diferenciais salariais por gênero entre trabalhadores e trabalhadoras com idênticas
características observadas, alocados a um mesmo grupo ocupacional. Estes
diferenciais podem ser tratados como estimativas do grau de discriminação
salarial ao longo dos anos 80. A terceira coluna da tabela mostra em que medida o
salário das mulheres é inferior ao dos homens em decorrência do fato de a
proporção das mulheres alocadas às melhores ocupações ser menor do que a dos
homens. Esta coluna pode ser considerada como uma estimativa da discriminação
alocativa por gênero ao longo dos anos 80. Finalmente, a quarta coluna apresenta
estimativas de em que medida os salários das mulheres são menores do que os dos
homens em decorrência de diferenças por gênero em algumas importantes
características individuais (nível educacional e experiência no mercado de
trabalho).
A decomposição apresentada na Tabela 5 revela três características básicas dos
diferenciais salariais por gênero no Brasil. Em primeiro lugar, não há um nível
significativo de discriminação alocativa por gênero no Brasil. É importante
lembrar que a inexistência de discriminação alocativa não significa que homens e
mulheres estejam igualmente representados nas diversas ocupações. É
perfeitamente possível ter-se uma estrutura ocupacional bastante diferenciada por
gênero, com as mulheres muito mais concentradas do que os homens em umas
poucas ocupações e, ainda assim, não existir discriminação alocativa. O que gera
discriminação alocativa não é simplesmente uma alocação diferenciada. Para que
haja discriminação alocativa é necessário que esta alocação diferenciada esteja
relacionada a níveis de renda diferenciados. Assim, se as mulheres estão superOS
DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
36
representadas na ocupação A e os homens na ocupação B, mas as duas ocupações
têm níveis de renda similares, então não vai ocorrer discriminação alocativa
apesar da alocação diferenciada por gênero. É importante salientar que esta
estimativa irrisória para o grau de discriminação alocativa por gênero pode ser
bastante sensível à agregação ocupacional utilizada. E esta, para gerar os
resultados apresentados na Tabela 5, se baseia numa divisão do espectro
ocupacional em apenas sete grandes grupos; desagregações mais finas ou
diferentes agregações podem ter grande influência sobre as estimativas do grau de
discriminação alocativa. No entanto, Mello (1982) utilizando uma desagregação
da economia em 42 setores revela que a discriminação alocativa explica menos de
5% do diferencial salarial por gênero.
Em segundo lugar, a Tabela 5 mostra que diferenças de produtividade por gênero
tendem a explicar uma parcela insignificante do hiato salarial por gênero. De fato,
se as mulheres tivessem as mesmas características dos homens sua renda seria
apenas cerca de 3% mais elevada. Este não é um fato surpreendente quando se
reconhece que no Brasil praticamente inexiste qualquer diferencial significativo
em nível educacional por gênero. Na verdade, para as coortes mais jovens já existe
até uma pequena vantagem favorecendo as mulheres.
Em terceiro lugar, e como decorrência da falta de poder explicativo da
discriminação alocativa e dos diferenciais de produtividade, tem-se que a quase
totalidade do diferencial salarial por gênero deve ser encarada como discriminação
salarial. Isto é, em grande medida, o nível salarial das mulheres é cerca de 40%
inferior ao dos homens porque as mulheres com as mesmas características e
ocupando as mesmas ocupações que os homens tendem a receber salários 40%
inferiores.
Um outro resultado importante encontrado em Barros, Ramos e Santos (1995) é
que o diferencial de salário por gênero é substancialmente maior quando se
compara chefes de família (o salário das mulheres chefes tende a ser, em média,
47% inferior ao salário dos homens) do que quando se compara homens e
mulheres que não são chefes ou esposas do chefe da família (mulheres que não
são chefes ou cônjuges recebem, em média, 16% menos que homens que não são
chefes ou cônjuges). Esta evidência revela que entre os jovens que entraram
recentemente no mercado de trabalho parece existir pouca discriminação salarial
por gênero, o que nos leva a considerar seriamente a possibilidade de que a
aparente discriminação salarial por gênero pode ser apenas o resultado de
diferenças entre homens e mulheres que não são observáveis (não captadas nas
pesquisas estatísticas comumente realizadas) e que se acumulam com o passar do
tempo, como diferenças em experiência efetiva no mercado de trabalho sendo o
exemplo mais comumente alegado.
Entretanto, mesmo supondo que todo o diferencial salarial entre homens e
mulheres fosse devido à discriminação salarial, qual seria a sua contribuição para
a desigualdade salarial no Brasil? A resposta é que se os diferenciais salariais por
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
37
gênero fossem eliminados, tudo o mais permanecendo constante, a desigualdade
salarial no Brasil seria reduzida em apenas cerca de 5%.
Em suma, diferenciais salariais por gênero da ordem de 40% são uma
característica persistente da economia brasileira que não se pode explicar por
diferenças por gênero nem em produtividade e nem em estrutura ocupacional. De
fato, a maior parte do diferencial parece ser devida ao pagamento desigual a
homens e mulheres com idênticas características observáveis que trabalham na
mesma ocupação. Apesar de persistente e de magnitude significativa, o diferencial
salarial por gênero representa uma contribuição pequena para a desigualdade
salarial global no Brasil.
4.2.2 - Discriminação racial
Durante um longo período de tempo estudos qualitativos comparados sobre
discriminação racial procuraram demonstrar que o Brasil, com a sua “democracia
racial”, deveria ter um grau de discriminação menor do que o encontrado em
sociedades segregadas como a África do Sul e os Estados Unidos. No entanto,
estudos recentes [Andrews (1992)] revelam que o grau de discriminação no Brasil
é da mesma ordem de magnitude que o encontrado nos Estados Unidos.
Esta semelhança é particularmente verdadeira quando se analisa o diferencial
salarial por cor. Nos Estados Unidos, a renda média dos homens pretos é cerca de
40% inferior à renda média dos homens brancos. No Brasil, a renda média dos
homens pretos e pardos é, também, cerca de 40 a 45% inferior à dos homens
brancos [Andrews (1992, Tabela 15)]. Mais surpreendente ainda é reconhecer que
este diferencial tem permanecido essencialmente constante nos últimos 30 anos
[Lowell (1992, Tabela 4) e Andrews (1992, Tabela 15)].
Uma investigação dos componentes deste diferencial pode ser encontrada em
Lowell (1992). Em seu estudo, Lowell procura estimar que parcela do diferencial
salarial total deve-se a diferenças salariais entre trabalhadores com características
observáveis idênticas, trabalhando em ocupações semelhantes, isto é, qual a
contribuição da discriminação salarial para o hiato salarial por cor. Os resultados
por ela encontrados para o Brasil relativos à discriminação salarial por cor
mostram que em 1960 homens não-brancos com as mesmas características que
homens brancos e com a mesma inserção no mercado de trabalho recebiam
salários apenas 7% inferiores, ao passo que em 1980 homens não-brancos
recebiam salários 14% inferiores aos dos homens brancos com características e
inserção no mercado de trabalho similares. Em suma, como o hiato salarial entre
brancos e não-brancos é da ordem de 45% do salário dos brancos, tem-se que
apenas uma parcela relativamente pequena deste diferencial deve-se à
discriminação salarial. Conseqüentemente, diferenças raciais em características
produtivas e inserção no mercado de trabalho representam uma importante
contribuição para o hiato salarial por cor, ao contrário do que é encontrado no caso
do diferencial salarial por gênero. No entanto, se por um lado é confortável saber
que as estimativas da discriminação salarial por cor são relativamente pequenas,
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
38
por outro é bastante preocupante observar que o grau de discriminação salarial por
cor tenha dobrado entre 1960 e 1980. Assim, a relativa estabilidade temporal do
hiato salarial por cor é na verdade a resultante de dois efeitos operando em
direções opostas. Por um lado, o fato de o diferencial educacional e em outras
características produtivas entre brancos e não-brancos ter diminuído ao longo das
décadas de 60 e 70 contribuiu para uma queda no hiato salarial por cor. Por outro,
o aumento na discriminação salarial por cor no período colaborou para uma
elevação deste hiato.
Supondo, de forma conservadora, que o diferencial salarial entre brancos e nãobrancos
seja hoje da ordem de 25% do salário dos brancos, qual seria a
contribuição da discriminação salarial para a desigualdade salarial no Brasil?
Assumindo-se este nível de discriminação salarial por cor, a sua erradicação
levaria a uma redução no grau de desigualdade de apenas 2%. Assim, a
discriminação salarial por cor no Brasil, apesar de certamente presente e
representando uma importante fonte de injustiça social e um evidente desvio do
ideal de igualdade de oportunidade, não representa, de um ponto de vista
puramente quantitativo, uma contribuição significativa para a desigualdade
salarial.
5 - O MERCADO DE TRABALHO COMO TRANSFORMADOR DE
DESIGUALDADES
A variedade de características individuais capaz de influenciar a produtividade de
um dado trabalhador é, certamente, apenas limitada por nossa imaginação. Assim,
com o objetivo de investigar de forma simplificada o papel do mercado de
trabalho na transformação da desigualdade de características (desigualdade de
condições) em desigualdade salarial (desigualdade de resultados), vamos assumir
que estas características podem ser sumariadas em um escalar. Além disso, para
que este seja útil a nossa análise, vamos supor que a produtividade de um
trabalhador seja uma função apenas deste escalar, que denominaremos qualidade
do trabalhador.
Numa economia com estas características, a desigualdade irá depender da
distribuição dos trabalhadores por nível de qualidade e da função que relaciona a
qualidade de um trabalhador ao seu salário. Quanto maior a desigualdade de
qualidade entre os trabalhadores e quanto maior for o impacto da qualidade do
trabalhador sobre o salário maior será a desigualdade salarial transformada pelo
mercado de trabalho.17
17Conforme vimos no arcabouço apresentado na Seção 3, quanto maior o efeito marginal do grau
de preparação de um participante sobre o seu tempo de chegada, maior será a desigualdade de
tempos reais de chegada para uma dada desigualdade no grau de preparação, ou seja, mais a
desigualdade de condições será amplificada na competição. Assim, apesar de uma competição
justa não gerar desigualdade, funcionando apenas reveladora da desigualdade de condições dos
participantes, dependendo da relação entre preparação e tempo real de chegada, esta revelação da
desigualdade pode levar a uma enorme amplificação ou atenuação da desigualdade de condições.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
39
Vale, no entanto, notar que o mercado de trabalho só irá transformar desigualdade
se existir alguma desigualdade de qualidade entre trabalhadores e se diferenças de
qualidade implicaram diferenças em produtividade. De fato, se todos os
trabalhadores forem idênticos com respeito à qualidade, o mercado de trabalho,
obviamente, não poderá transformar desigualdade pois ela deixará de existir. Por
outro lado, se diferenças em qualidade não levam a diferenças em produtividade,
então o mercado de trabalho também não irá transformar a desigualdade de
qualidade. Neste caso, toda desigualdade de qualidade entre trabalhadores é
irrelevante ao mercado de trabalho e, portanto, será por ele ignorada.
Em suma, qualquer análise da importância do mercado de trabalho como
transformador de desigualdade requer estimativas da desigualdade de qualidade
entre os trabalhadores e da relação entre qualidade e produtividade. A
desigualdade de qualidade entre trabalhadores é gerada na fase pré-mercado de
trabalho e será investigada na Seção 6. A relação entre produtividade e qualidade
do trabalhador, no entanto, é uma característica do mercado de trabalho e,
portanto, será investigada nesta seção.
Pode-se dizer que a sensibilidade da produtividade à qualidade do trabalhador
depende de fatores de demanda e de oferta no seguinte sentido: se a oferta de
trabalhadores de alta qualidade aumenta em relação à oferta de trabalhadores de
baixa qualidade, em geral, deve-se observar uma queda na produtividade dos
trabalhadores de alta qualidade e uma concomitante elevação na produtividade dos
trabalhadores de baixa qualidade. A justificativa para este fato advém do
(des)congestionamento que um aumento (redução) na oferta de trabalhadores de
(baixa) alta qualidade deve causar. Assim, deve-se esperar que a produtividade de
um tipo de trabalhador possa ser tão mais elevada quanto mais escasso for este
tipo de trabalhador (este é, fundamentalmente, o princípio dos retornos
decrescentes). Assim, por exemplo, espera-se que, à medida que o nível de
escolaridade da população se eleve, o diferencial de salário e produtividade entre
trabalhadores com alto e baixo nível educacional se reduza.
Pelo lado da demanda, tem-se que mudanças na composição setorial da produção
e mudanças tecnológicas possuem um impacto importante sobre a relação entre
produtividade e qualidade do trabalhador. A natureza do impacto vai, no entanto,
depender do tipo de mudança na composição setorial e tecnológica. Por exemplo,
uma mudança da estrutura produtiva que leve a um aumento na participação do
setor industrial no produto nacional deve tender a elevar a demanda por
trabalhadores qualificados e a reduzir a demanda por não-qualificados, levando a
uma elevação na sensibilidade da produtividade à qualidade do trabalhador. Da
mesma forma, na maioria dos casos, o progresso tecnológico é viesado a favor de
trabalhadores qualificados. Assim, se tudo o mais permanecer constante, o
progresso tecnológico deve levar a uma contínua elevação da sensibilidade da
produtividade -- e, portanto, dos salários -- à qualidade do trabalhador na medida
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
40
em que aumenta a demanda por trabalhadores qualificados e reduz a demanda por
não-qualificados. É exatamente por isso que Tinbergen (1975) caracteriza a
determinação da sensibilidade da produtividade (salário) à qualidade do
trabalhador como uma corrida entre o progresso tecnológico e mudanças
estruturais na composição da produção, por um lado, e a expansão do sistema
educacional, por outro. Se esta é lenta e o progresso tecnológico rápido (caso
típico do Brasil), a sensibilidade da produtividade à qualidade do trabalhador
tende a se elevar. Contudo, se ela é mais rápida do que o progresso tecnológico, a
sensibilidade da produtividade à qualidade tende a se reduzir.
Nas seções que se seguem discutiremos como o mercado de trabalho transforma
em desigualdade salarial a desigualdade entre trabalhadores, com respeito a três
características intimamente relacionadas à produtividade: experiência no mercado
de trabalho, tempo na empresa e nível educacional. Optamos por concentrar a
discussão nestas três características, uma vez que estas são as que têm sido
investigadas mais sistematicamente.
Para cada uma destas características, avaliaremos e discutiremos: a) o grau de
desigualdade na distribuição da característica; b) o grau de sensibilidade dos
salários a variações na característica; e c) a magnitude da desigualdade salarial
obtida da transformação da desigualdade na distribuição da característica em
desigualdade salarial. Além disso, sempre que possível, procuraremos avaliar
como estes três aspectos têm variado ao longo das últimas décadas.
5.1 - O Papel da Experiência no Mercado de Trabalho
A experiência de um trabalhador tem sido amplamente reconhecida como um
importante determinante da sua produtividade. Com o objetivo de entender a
relação entre experiência e produtividade, é importante discernir entre dois tipos
de experiência: a no mercado de trabalho (há quantos anos um indivíduo trabalha)
e a no emprego atual (há quantos anos o trabalhador está no seu emprego atual).
Acredita-se que a produtividade seja mais sensível à experiência no emprego atual
do que à experiência no mercado de trabalho, daí a idéia de que a rotatividade da
mão-de-obra tende a reduzir a produtividade. Assim, entre dois trabalhadores com
a mesma experiência no mercado de trabalho, a produtividade tende a ser maior
para aquele que está no emprego atual há mais tempo. Nesta seção, discutiremos a
relação entre experiência no mercado de trabalho e desigualdade salarial. A
relação entre o tempo na empresa e desigualdade será objeto da análise da
próxima subseção.
Argumenta-se que a parcela da desigualdade salarial devido a diferenças em
experiência no mercado de trabalho tem pouca ou nenhuma conexão com
diferenças de bem-estar e, portanto, não deveria ser levada em consideração em
estudos sobre o grau de desigualdade salarial. A argumentação é que como todos
os trabalhadores vão passar por todos os níveis de experiência durante o seu ciclo
de vida, as diferenças existentes em um ponto no tempo são apenas uma
conseqüência do fato de que a cada ponto no tempo sempre existirão trabalhadores
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
41
em pontos distintos do seu ciclo de vida. Assim, as diferenças num ponto do
tempo podem ser elevadas sem que, na verdade, existam diferenças interpessoais,
quando a unidade de tempo deixa de ser o ano ou mês e passa a ser o ciclo
completo de vida de um trabalhador.18
Esta argumentação é válida, no entanto, apenas se duas condições forem
verdadeiras. Em primeiro lugar, é necessário que, de fato, todos os trabalhadores
tenham a mesma chance de acumular experiência ao longo do seu ciclo de vida.
Esta condição é particularmente falsa quando alguns grupos -- como, por exemplo,
as mulheres, por terem que desempenhar outras funções não vinculadas ao
mercado de trabalho durante seu ciclo de vida -- são levados a participar do
mercado de trabalho de forma mais intermitente e, portanto, acumulam menos
experiências do que os trabalhadores que permanecem vinculados ao mercado de
trabalho de forma mais contínua.
Em segundo lugar, é necessário que os trabalhadores possam poupar e obter
empréstimos a taxas semelhantes. Caso contrário, o bem-estar corrente não será
apenas uma função da renda do trabalhador ao longo do seu ciclo de vida. De fato,
na ausência de um mercado de crédito, o bem-estar de um trabalhador vai
depender apenas da sua renda corrente e, portanto, todo tipo de desigualdade
salarial corrente terá efeito sobre a desigualdade de bem-estar.
Uma das dificuldades do estudo da relação entre experiência no mercado de
trabalho e desigualdade salarial advém do fato de que raramente se tem
informações diretas sobre a experiência de um trabalhador. A maioria dos estudos
baseia-se na idéia de que um indivíduo com 35 anos, que tenha iniciado sua
educação aos sete anos de idade e completado o segundo grau (11 anos de estudo),
terá 18 anos de experiência se permaneceu continuamente empregado e nunca
repetiu série alguma. Como a hipótese de ter estado continuamente empregado
aplica-se a apenas uma parcela da força de trabalho feminina, estes estudos têm-se
limitado a analisar a relação entre experiência e salários para a força de trabalho
masculina. A aplicação desta técnica de imputação é adicionalmente problemática
quando aplicada ao Brasil devido ao alto índice de repetência escolar. Além disso,
a elevada prevalência do trabalho precoce no Brasil gera dificuldades na
comparação da experiência no mercado de trabalho entre pessoas que entraram no
mercado de trabalho com idades distintas. Por exemplo, o impacto sobre a
produtividade do primeiro ano de experiência no mercado de trabalho, de alguém
que entra no mercado aos 10 anos, deve ser completamente diferente do impacto
do primeiro ano de experiência de alguém que entra aos 18 anos.
Apesar destas dificuldades, alguns estudos sobre a importância da experiência no
mercado de trabalho têm sido realizados no Brasil [veja, por exemplo, Branco
(1979)]. Estes estudos têm encontrado duas regularidades importantes. Em
primeiro lugar, no Brasil, assim como no resto do mundo, existe uma relação entre
18Paglin (1975), em um trabalho muito influente, propôs mudanças na mensuração da
desigualdade, de forma a eliminar o efeito de diferenças em experiência no mercado de trabalho
sobre o grau de desigualdade.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
42
salário e experiência no mercado de trabalho com a forma de um U-invertido (ver
Gráfico 8). Este fato revela que os salários crescem inicialmente com a
experiência a taxas decrescentes. A partir de 25 a 30 anos de experiência, os
salários tendem a decrescer com o nível de experiência do trabalhador. Este fato é
considerado uma indicação da obsolescência e depreciação da qualificação do
trabalhador.
Em segundo lugar, estima-se que para trabalhadores com níveis de experiência
próximos à média (15 a 20 anos de experiência) os salários crescem a taxas entre
1 e 2% por ano adicional de experiência -- uma taxa relativamente baixa se
comparada com a observada nos Estados Unidos.
Pode-se argumentar, portanto, que a experiência dos trabalhadores brasileiros
parece ter um impacto menor sobre a produtividade do que a dos norteamericanos.
Este fato pode ser explicado pela maior escolaridade dos
trabalhadores norte-americanos, se aceitamos a hipótese de que o impacto da
experiência no mercado de trabalho sobre a produtividade deva ser crescente com
o nível educacional; trabalhadores com maior escolaridade tendem a aprender
mais por unidade de tempo. Embora a relação entre experiência no mercado de
trabalho e nível salarial seja comumente encarada como revelando uma relação
entre experiência e produtividade, é importante enfatizar que esta associação pode
não ser apropriada. Em particular, numa economia em que regras internas às
firmas estabelecem que o acesso a promoções e aumentos salariais não é baseado
puramente em ganhos de produtividade, mas também no tempo que o trabalhador
está na empresa, é de se esperar que a experiência tenha um maior impacto sobre o
nível salarial do que sobre a produtividade. Neste caso, existiria discriminação
contra os menos experientes e as estimativas acima estariam superestimando o
impacto da experiência sobre a produtividade.
Finalmente, resta estimar qual a contribuição da experiência no mercado de
trabalho para a desigualdade salarial. Como já mencionado, a contribuição de uma
dada característica para a desigualdade salarial depende de dois fatores: da
desigualdade na distribuição da característica e da relação entre a característica e o
nível salarial. O impacto da experiência no mercado de trabalho sobre o nível
salarial foi discutido anteriormente (ver Gráfico 8). Resta, portanto, conhecer a
distribuição da experiência na população para que o seu impacto sobre a
desigualdade salarial possa ser estimado. Infelizmente, estimativas da distribuição
da experiência no mercado de trabalho no Brasil existem apenas para
trabalhadores do gênero masculino. Com base nas estimativas para homens e
assumindo que existe uma considerável desigualdade por gênero em experiência
chega-se a estimativas de que a contribuição da experiência para a desigualdade
salarial é da ordem de 5%. Isto é, se os diferenciais salariais por nível de
experiência fossem eliminados, tudo o mais permanecendo constante, a
desigualdade salarial no Brasil seria reduzida em cerca de 5%.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
43
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
44
5.2 - O Papel da Experiência na Empresa
A relação entre tempo na empresa e produtividade tem sido alvo de intenso
debate. Antes de entrarmos propriamente neste tópico, é conveniente entender, em
primeiro lugar, porque os salários tendem a ser maiores entre trabalhadores com
mais tempo na empresa. Existem pelo menos três explicações alternativas que
possuem implicações radicalmente distintas. Em primeiro lugar, o salário pode
crescer com o tempo na empresa simplesmente devido a regras internas desta que
pouco ou nada tem a ver com o crescimento da produtividade. Assim, por
exemplo, se o desempenho de um trabalhador não pode ser monitorado
perfeitamente pela empresa, então um perfil salarial crescente com o tempo na
empresa pode servir como um incentivo para os trabalhadores desempenharem
suas funções de forma apropriada sem buscar ganhos de produtividade [Lazear
(1979)]. Neste exemplo, os salários crescem com o tempo na empresa apesar de a
produtividade permanecer constante.
Em segundo lugar, o salário pode crescer com o tempo na empresa porque os
trabalhadores que melhor se adequam às funções da empresa permanecem
enquanto aqueles que não se adaptam pedem demissão ou são demitidos. Neste
caso, a produtividade de cada indivíduo não é influenciada pelo tempo na
empresa, mas como existem diferenças de produtividade entre os trabalhadores e
apenas aqueles com maior produtividade permanecem, o processo de seleção que
se desenvolve leva a que os trabalhadores com mais tempo na empresa tenham,
em média, maior produtividade e, conseqüentemente, maiores salários do que os
recém-contratados. No entanto, é importante reconhecer que neste caso, assim
como no anterior, o tempo na empresa em si não afeta a produtividade dos
trabalhadores.
Finalmente, temos o caso em que o tempo na empresa de fato eleva a
produtividade do trabalhador, uma vez que parte deste tempo é utilizada pelo
trabalhador para desenvolver ou aprimorar suas habilidades. Existe, portanto, uma
relação entre a produtividade do trabalhador e o tempo de permanência na
empresa, que é revelada pela dependência do salário ao tempo na empresa. Em
geral, as habilidades adquiridas por um trabalhador são em certa medida
específicas ao emprego atual e, portanto, têm maior impacto sobre a produtividade
neste emprego do que em outros, levando a que o tempo na empresa tenha maior
impacto sobre a produtividade e o salário do que a experiência no mercado de
trabalho.
No que se segue vamos assumir que este terceiro caso é a principal explicação
para a relação entre salário e tempo na empresa. Quando esta é a explicação temse
que a produtividade da força de trabalho será tanto maior quanto mais
duradouras forem as relações de trabalho. Este argumento tem sido
sistematicamente utilizado para explicar a elevada produtividade da força de
trabalho japonesa e, também, para combater a idéia de que quanto maior o grau de
flexibilidade do mercado de trabalho melhor. De fato, se a flexibilidade do
mercado de trabalho, por um lado, melhora a eficiência alocativa da economia, por
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
45
outro, quando há treinamento específico, existem perdas devido à queda de
produtividade advinda da perda de treinamento específico dos trabalhadores que
são realocados.
Como a experiência no mercado de trabalho, a experiência específica encontra-se
desigualmente distribuída a cada ponto no tempo. Mas, ao contrário da
experiência no mercado de trabalho, a específica também encontra-se
desigualmente distribuída quando se toma o ciclo de vida dos trabalhadores como
unidade de análise. Isto ocorre porque alguns grupos de trabalhadores tendem a ser
mais móveis e, portanto, a ter relações de trabalho de mais curta duração.
A maior atenção, em termos relativos, dada à experiência na empresa advém não
só da sua importância quantitativa, mas também do fato de que a duração dos
empregos na economia é consideravelmente influenciada pelas políticas públicas e
legislação ligadas ao mercado de trabalho, como, por exemplo, o salário mínimo e
a multa por demissão sem justa causa. Assim, um caminho importante para
combater a desigualdade parece ser o uso de políticas públicas com o objetivo de
influenciar a duração das relações de trabalho.
Da mesma forma como a relação entre desigualdade salarial e qualquer
característica da mão-de-obra, a relação entre desigualdade salarial e tempo na
empresa depende de dois fatores: grau de desigualdade entre trabalhadores com
respeito ao tempo na empresa e da sensibilidade dos salários ao tempo na
empresa.
O Gráfico 9 mostra como o salário no Brasil varia com o tempo na empresa. Este
gráfico revela que, como era de se esperar, os salários são bem mais sensíveis ao
tempo na empresa do que à experiência no mercado de trabalho. De fato, um ano a
mais numa empresa tende a elevar os salários em cerca de 5%.19 Note-se que este
valor é bem mais elevado do que aquele encontrado se utilizássemos a relação
entre salário e experiência no mercado de trabalho (2-3%). No entanto, se, por um
lado, os salários são mais sensíveis à experiência na empresa do que à experiência
no mercado de trabalho, por outro, nos dois casos a relação tem a forma de um Uinvertido,
isto é, nos dois casos existem retornos decrescentes e obsolescência.
19Assumindo que a experiência no mercado de trabalho é de 10 anos e o tempo na empresa cinco
anos (tempo médio típico para a força de trabalho alocada ao setor formal da economia).
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
46
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
47
Com o objetivo de estimar a importância da desigualdade em tempo na empresa
para a desigualdade salarial no Brasil, resta estimar a distribuição desta
característica entre membros da força de trabalho. Infelizmente, são bem poucas
as estimativas reais e mesmo as que existem referem-se apenas ao setor formal da
economia. Utilizando-se estas estimativas chega-se a que a contribuição das
disparidades em tempo na empresa para a desigualdade salarial pode ser
substancial, atingindo valores da ordem de 10%.
5.3 - O Papel da Escolaridade
A relação entre educação e desigualdade salarial tem sido investigada
intensivamente em todo o mundo e, em particular, no Brasil. Desde o excepcional
trabalho de Langoni (1973), uma grande quantidade de trabalhos foi realizada
demonstrando, empiricamente, o papel fundamental que a educação desempenha
na explicação de diversos aspectos da desigualdade salarial no Brasil. Mais
especificamente, tem-se demonstrado que o comportamento do sistema
educacional brasileiro é causado por: a) elevado nível de desigualdade salarial
observado no Brasil; b) grande aumento no grau de desigualdade salarial ocorrido
ao longo da década de 60; e c) grandes diferenças regionais em desigualdade de
renda entre o Nordeste e o Sudeste. Passamos, então, a analisar cada um destes
três itens.
5.3.1 - Educação e o grau de desigualdade salarial
Como acontece com qualquer outra característica individual que influencia
produtividade e salário, a relação entre educação e desigualdade salarial depende
de dois fatores: grau de desigualdade entre trabalhadores com respeito à educação
e sensibilidade dos salários ao nível educacional.
Com respeito à desigualdade em educação, poucos países no mundo conseguem
atingir níveis semelhantes aos do Brasil. Com quase 15% da força de trabalho
formados por trabalhadores sem instrução alguma e cerca de 10% da população
com educação superior, o Brasil consegue atingir níveis de desigualdade em
educação insuperáveis. Estudos comparativos entre Brasil e Estados Unidos
revelam que o grau de desigualdade educacional no Brasil é cerca de seis vezes
superior ao observado nos Estados Unidos [ver Lam e Levison (1990)]. Este
resultado é corroborado por Ram (1990) que em um estudo comparativo entre 28
países observa que o Brasil é o país com o mais alto grau de desigualdade no
grupo.
O impacto deste elevado grau de desigualdade em educação sobre a desigualdade
salarial depende da relação entre salário e educação verificada no Brasil. De fato,
se o mercado de trabalho brasileiro não valorizar significativamente diferenciais
de educação, é possível que esta elevada desigualdade educacional não tenha
grande impacto sobre a desigualdade salarial. Assim, para que esta maior
desigualdade educacional implique maior contribuição da educação para a
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
48
desigualdade salarial, é necessário que o mercado de trabalho brasileiro valorize a
educação pelo menos tanto quanto o mercado de trabalho de outros países.
No Brasil, cada ano de escolaridade adicional tende a elevar o nível salarial de um
trabalhador em aproximadamente 15%. O Gráfico 10 mostra que este valor
permaneceu razoavelmente estável ao longo do período 1976/89. No entanto, este
mesmo gráfico revela que o valor de um ano adicional de educação varia com o
nível educacional. Para um trabalhador com apenas os quatro primeiros anos do
primeiro grau (antigo primário), um ano adicional de estudo tende a elevar o
salário em menos de 15%, enquanto para um trabalhador com nível secundário e
superior um ano adicional de estudo leva a aumentos de salário superiores a 15%.
Com o objetivo de demonstrar que este nível de sensibilidade dos salários ao nível
educacional é bastante elevado, o Gráfico 11 apresenta, para vários países no
mundo, estimativas do desvio em relação à média desta sensibilidade.20 Conforme
este gráfico revela, em poucos países do mundo os salários são tão sensíveis à
educação como no Brasil.
Em suma, o Brasil não é somente um dos países do mundo com o mais alto grau
de desigualdade em educação, mas também é um dos países com a maior
sensibilidade dos salários ao nível educacional do trabalhador. Estes dois fatores
em conjunto levam a que a contribuição da desigualdade educacional para a
desigualdade salarial no Brasil seja, também, uma das mais elevadas no mundo.
Devido a sua importância, existe uma extensa literatura inteiramente dedicada a
estimar a contribuição das desigualdades educacionais para a desigualdade salarial
no Brasil. Os resultados obtidos são impressionantes. Estima-se que, se os
diferenciais de salário por nível educacional fossem eliminados, tudo o mais
permanecendo constante, a desigualdade salarial no Brasil declinaria de 35 a 50%.
Uma rápida revisão da magnitude da contribuição dos diversos componentes da
desigualdade salarial investigados acima mostra, claramente, que a contribuição
da educação é consideravelmente maior do que a contribuição de qualquer forma
de segmentação e discriminação ou demais características individuais investigadas
(experiência no mercado de trabalho e na empresa).
20A sensibilidade dos salários ao nível educacional é, em média, 11% (no universo de países em
questão). Isto significa que cada ano adicional de escolaridade eleva os salários, em média, em
11%.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
49
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
50
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
51
Assim, é difícil imaginar políticas de combate à desigualdade salarial no Brasil
que possam ter um poder comparável a políticas educacionais voltadas para a
redução da desigualdade educacional. É importante ressaltar que no Brasil
políticas educacionais que levem à redução nas desigualdades educacionais não
são difíceis de idealizar. Em princípio, qualquer política que leve a um aumento
na proporção da população com os primeiros quatro anos de estudo completos
(antigo primário) implica uma redução no grau de desigualdade em educação.
5.3.2 - Educação e o aumento no grau de desigualdade salarial
Nos últimos 30 anos o grau de desigualdade salarial elevou-se significativamente.
Este aumento ocorreu, fundamentalmente, durante as décadas de 60 e 80, uma vez
que durante a década de 70 a desigualdade permaneceu relativamente estável.
Nesta subseção buscamos determinar qual a contribuição da educação para este
aumento histórico na desigualdade salarial.
A relação entre educação e mudanças no grau de desigualdade se dá via dois
canais. Por um lado, mudanças na distribuição de educação, em geral, levam a um
nível educacional médio mais elevado, mas o grau de desigualdade pode ser maior
ou menor. Tudo o mais constante, um aumento (redução) na desigualdade em
educação leva a aumento (redução) na desigualdade salarial. Este é o impacto
direto de mudanças educacionais sobre a desigualdade salarial.
Por outro, a sensibilidade salarial ao nível educacional pode, também, variar ao
longo do tempo, ou como uma conseqüência das mudanças na distribuição de
educação ou devido a outros fatores. Caso tudo o mais permaneça constante e esta
sensibilidade se eleve (reduza), o grau de desigualdade irá, também, se elevar
(reduzir).
A contribuição destes dois efeitos para o aumento no grau de desigualdade nos
anos 60 e 80 é completamente distinta. Durante a década de 80 as mudanças na
distribuição de educação e na sensibilidade dos salários ao nível educacional dos
trabalhadores são completamente incapazes de explicar o aumento no grau de
desigualdade salarial. Durante os anos 60, tanto a desigualdade em educação como
a sensibilidade dos salários à educação se elevaram consideravelmente explicando
cerca da metade do grande aumento de desigualdade ocorrida no período. Assim,
se a distribuição de educação e a sensibilidade dos salários à educação
permanecessem inalteradas ao longo dos anos 60, o aumento na desigualdade teria
sido apenas a metade do que realmente ocorreu.
O fato de a expansão educacional ocorrida nos anos 60 ter levado a um aumento
na desigualdade em educação e, a partir daí, a um aumento na desigualdade
salarial não chega a ser um fato surpreendente. Em geral, expansões educacionais
que partem de níveis educacionais muito baixos levam a aumentos no grau de
desigualdade de educação e de salário. Resultados deste tipo têm sido
sistematicamente encontrados para vários países no mundo [ver Mohan e Sabot
(1988), Reyes (1988) para Colômbia e, Park, Ross e Sabot (1991) para a Coréia].
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
52
De fato, Ram (1990) mostrou que esta é uma tendência geral; a desigualdade
educacional parece ter primeiro que crescer para depois declinar (ver Gráfico 12).
O fato raro a respeito da experiência brasileira na década de 60 foi o
comportamento da sensibilidade dos salários à educação. Todos os estudos feitos
para outros países demonstram que à medida que o sistema educacional se
expande -- isto é, a oferta relativa de trabalhadores mais (menos) educados se
eleva (reduz) -- a sensibilidade dos salários à educação tende a se reduzir levando
a um declínio na desigualdade salarial (veja os mesmos estudos citados acima).
Assim, em geral, uma expansão educacional tem dois efeitos, que vão em direções
opostas, sobre o grau de desigualdade salarial. Além disso, a experiência
internacional mostra que o impacto via redução na sensibilidade dos salários à
educação tende a dominar de tal forma que o impacto líquido de uma expansão
educacional predispõe uma redução no grau de desigualdade. Isto é o que ocorreu,
por exemplo, na Colômbia, Coréia e Quênia.
O fato de que no Brasil o impacto das mudança na sensibilidade dos salários à
educação tendeu a elevar a desigualdade ao invés de reduzi-la é bastante pouco
usual e gerou um grande debate. Por um lado, Langoni (1973) argumenta que este
fato ocorreu porque a expansão educacional foi lenta vis-à-vis as alterações
tecnológicas ocorridas no período, isto é, para Langoni o sistema educacional
perdeu a corrida contra a expansão tecnológica e, como conseqüência, a demanda
por trabalhadores qualificados expandiu-se mais rapidamente do que a oferta,
levando a um aumento na sensibilidade dos salários à educação. Para Fishlow
(1973), no entanto, a razão para o aumento na sensibilidade tem pouco a ver com
questões relacionadas a mudanças no perfil da demanda e da oferta por trabalho e
muito mais com as mudanças institucionais ligadas ao mercado de trabalho que
foram implementadas pelo regime militar na segunda metade da década de 60.
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
53
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
54
Embora as causas do aumento da sensibilidade dos salários à educação ao longo
da década de 60 ainda sejam discutíveis, suas conseqüências não o são. É
simplesmente um fato que o aumento da desigualdade educacional e da
sensibilidade dos salários à educação nos anos 60 explica metade do aumento na
desigualdade que ocorreu no período.
5.3.3 - Educação e as disparidades regionais em desigualdade
salarial
Um aspecto importante da desigualdade salarial no Brasil, que pode ser útil para
alcançar seus determinantes, é o fato de que o grau de desigualdade é bem mais
elevado no Nordeste do que no Sudeste. Por exemplo, Reis e Barros (1990)
mostram que a desigualdade salarial em Fortaleza é cerca de 40% maior do que
em São Paulo. Se educação é realmente um importante determinante da
desigualdade salarial no Brasil, então, ela deve ser capaz de explicar estas
diferenças regionais em desigualdade.
Como no caso de variações intertemporais, também no de variações regionais
existem dois mecanismos ligando educação e variações ao grau de desigualdade.
Por um lado, há as diferenças regionais na distribuição de educação. Por outro,
encontram-se as diferenças regionais na sensibilidade dos salários à educação.
Em sua análise das diferenças regionais em desigualdade salarial no Brasil, Reis e
Barros (1990) mostram que se as diferenças entre São Paulo e Fortaleza com
respeito à distribuição de educação fossem eliminadas, tudo o mais permanecendo
constante, teríamos um aumento na diferença do grau de desigualdade entre as
duas regiões. Este fato revela que, apesar de apresentar um grau de desigualdade
salarial mais alto, Fortaleza tem um grau de desigualdade em educação menor do
que São Paulo. Ao contrário de ser inesperado, este fato está em total acordo com
a idéia de que quando o sistema educacional se expande a desigualdade
educacional tende inicialmente a se elevar. Assim, como o nível educacional em
São Paulo é maior, esperava-se que a desigualdade educacional fosse também
maior em São Paulo. Ao eliminarmos o diferencial de desigualdade educacional
entre as duas regiões era de se esperar um aumento no diferencial de desigualdade
salarial.
No entanto, Reis e Barros (1990) mostram que se a diferença na sensibilidade dos
salários à educação entre as duas regiões metropolitanas fosse também eliminada,
tudo o mais permanecendo constante, a diferença regional em desigualdade
salarial seria reduzida drasticamente de quase 40% para menos de 13%. Em outras
palavras, diferenças regionais na sensibilidade dos salários à educação são capazes
de explicar cerca de 2/3 das diferenças regionais em desigualdade salarial.
Mais uma vez fica constatada a importância da educação em explicar o grau de
desigualdade salarial e suas variações. Assim, a distribuição de salários no
Nordeste é mais desigual do que a distribuição no Sudeste, essencialmente porque
no Nordeste existe maior sensibilidade dos salários à educação decorrente,
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
55
possivelmente, do mais baixo nível educacional da força de trabalho no Nordeste
quando comparado ao da força de trabalho no Sudeste.
6 - O PAPEL DO AMBIENTE FAMILIAR E DAS DISPARIDADES
REGIONAIS EM INFRA-ESTRUTURA NA GERAÇÃO DA
DESIGUALDADE
O trabalho clássico sobre o impacto da educação dos pais sobre a escolaridade dos
filhos no Brasil é o de Souza (1979). Trabalhos mais recentes são os de Souza e
Silva (1993) e Barros e Lam (1993). Segundo Barros e Lam (1993, Tabela 4), a
escolaridade de crianças com 14 anos, tanto em São Paulo quanto no Nordeste,
cresce com a educação de seus pais, sendo esta sensibilidade maior no Nordeste.
Nesta região, um ano extra de estudo para o pai e a mãe leva a uma elevação da
educação da criança em 0,52 ano de estudo, ao passo que, em São Paulo, um ano
extra de educação para o pai e a mãe leva a um acréscimo de apenas 0,40 ano de
estudo.
Para avaliar quão elevada é esta sensibilidade considere que uma meta para a
educação no Brasil seria que crianças com 14 anos tivessem, em média, seis anos
de estudo. Isto significa, de acordo com Barros e Lam (1993, Tabela 1), um hiato
de 1,2 ano de estudo para São Paulo e 2,7 anos de estudo para o Nordeste. Caso
este hiato tivesse que ser eliminado com base numa melhoria na educação dos
pais, seria necessário elevar a educação destes em São Paulo em três anos de
estudo e, no Nordeste, em 5,2 anos. Claramente, uma mudança por demais
drástica, dado que a escolaridade média atual é de cerca de cinco anos de estudo e
que esta tem crescido cerca de um ano de estudo por década [ver Barros,
Mendonça e Rocha (1993, Tabela 10)]. Em suma, podemos concluir que existe
uma baixa sensibilidade da educação das crianças à educação de seus pais no
Brasil e, portanto, que o papel da educação dos pais sobre a desigualdade de
oportunidades não é tão elevado como poderíamos esperar.
As disparidades regionais em escolaridade da população infantil no Brasil são,
ainda, bastante expressivas. De fato, conforme Barros e Lam (1993, Tabela 1)
mostram, crianças com 14 anos em São Paulo completaram, em média, 4,8 anos
de estudo, enquanto no Nordeste, esta média é de apenas 3,3 anos. Além disso,
enquanto em São Paulo a proporção de crianças com 14 anos que nunca chegaram
a completar um ano de estudo é de 3% e a proporção com menos de quatro anos
de estudo é 21%, no Nordeste estas proporções são 13 e 52%, respectivamente.
Estas disparidades, no entanto, não representam necessariamente desigualdade de
oportunidade associada à região de residência, uma vez que, pelo menos em parte,
podem ser explicadas por concomitantes diferenças regionais na educação dos
pais. De fato, como Barros e Lam (1993) mostram, a educação média dos pais
(mães) em São Paulo é, em média, 1,4 (0,7) ano superior à do Nordeste. Para
determinar qual a importância da região de residência sobre a educação das
crianças com 14 anos, descontada do efeito da educação dos pais, os autores
estimaram qual teria sido a diferença regional em educação entre as crianças com
OS DETERMINANTES DA DESIGUALDADE NO BRASIL
56
14 anos caso a distribuição de educação dos pais no Nordeste fosse igual à de São
Paulo. A resposta é algo surpreendente: se dermos aos pais no Nordeste a mesma
distribuição de educação dos pais em São Paulo, a educação das crianças com 14
anos no Nordeste se elevaria em apenas 0,3 ano, reduzindo, portanto, o hiato
regional de 1,5 para 1,2. Em suma, região de residência tem uma contribuição
independente importante, levando a que as disparidades regionais no Brasil sejam
uma fonte importante de desigualdade em oportunidades educacionais

Nenhum comentário: